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A febre que silencia as florestas.

SANTA TERESA, ES - Numa floresta das terras altas da região central do Espírito Santo, o chiado das cigarras é interrompido por risadas distantes. O riso, na verdade, é o grito de alerta de um bando de sauás, que se embrenha pela mata e desaparece. Os sauás da Reserva Biológica de Santa Lucia, em Santa Teresa, são sobreviventes de um massacre. Fogem da segunda onda de destruição da Mata Atlântica em menos de dois anos. À medida que a febre amarela se alastra, ninguém mais canta, ninguém ri. A febre calou os macacos, as vozes mais estridentes da floresta, e mergulhou a Mata Atlântica numa de suas maiores tragédias.

No Espírito Santo, Matheus Torrezani, graduando em Ciencias Biologicas, e Georgia Lyto, mestranda em Biologia Animal, medem o barbado, ou bugio - Agência O Globo

A primeira onda veio em lama e rocha de mineração. Arrancou árvores. Sepultou rios. A segunda se derrama agora pela copa das florestas, vence montanhas, espalha morte. A febre amarela provoca o que especialistas já consideram a maior matança de animais na história recente da Mata Atlântica. Depois da onda de rejeitos da barragem da Samarco em Mariana, em 2015, o mais devastado dos biomas do Brasil sofre outra vez. De novo, o epicentro é o Vale do Rio Doce, entre Minas Gerais e Espírito Santo. Mas há registros de macacos mortos também em São Paulo, Bahia, Goiás e Mato Grosso do Sul.

O primatologista Sérgio Lucena, que há três décadas estuda a região do Doce, diz que só no Espírito Santo 600 carcaças de macacos foram encontradas desde o início de janeiro. Esse número, segundo ele, representa apenas entre 10% a 20% do real. Em Minas, os macacos simplesmente desapareceram de algumas regiões. Começaram a morrer meses antes e ninguém sabe calcular ainda a perda. A única certeza é o silêncio da mata. Os ruidosos macacos, em sua maioria, morreram.

— Só é possível recuperar uma pequena parcela dos animais, aqueles que morreram no chão da floresta, mas muitos deles estão nas árvores. São milhares os macacos mortos. Esse é um desastre sem precedentes na história da Mata Atlântica. Estamos no olho do furacão — afirma o cientista, professor do Laboratório de Biologia de Conservação de Vertebrados da Universidade Federal do Espírito Santo.

As principais vítimas são os bugios ou barbados (Alouatta guariba), outrora muito comuns em toda a região. Mas nesta epidemia em animais — epizootia, no jargão da ciência — morrem também sauás ou guigós (Callicebus personatus), macacos-pregos (Supajus nigritus) e micos-de-cara-branca (Callithrix geoffrey).

A região é habitat de espécies ameaçadas de extinção. O mais precioso de todos, o muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthu), o maior primata das Américas, por enquanto tem se mantido a salvo — a espécie parece ser mais resistente ao vírus da febre amarela. Mas o raro e ameaçado sagui-da-serra (Callithrix flaviceps) não escapou. Na semana passada, de um bando de 14 animais, 12 morreram de febre hemorrágica em Ipanema, município mineiro na divisa com o Espírito Santo.

— Os macacos são mais vulneráveis do que o ser humano. Para eles, não há a proteção da vacina. Nas florestas, a febre amarela silvestre ocorre em ciclos de cerca de sete anos. Mata macacos e depois desaparece para reemergir, quando a população se recupera. Mas nada com a dimensão que vemos agora aconteceu antes. É sem precedentes — salienta Lucena.

A febre amarela não é uma doença originária da floresta brasileira. É um flagelo que acompanhou a desgraça da escravidão. Os navios negreiros do século XVII trouxeram da África também o vírus e o mosquito Aedes aegypti. A febre era inicialmente urbana.

Mas o vírus se espalhou e nos anos 30 do século XX, a forma silvestre foi descrita no Vale do Canaã, no Espírito Santo, onde agora volta a assombrar. O vírus se tornou capaz de infectar os mosquitos silvestres e estes o transmitiram para suas vítimas preferenciais, os macacos. O principal reservatório é o mosquito. E o macaco se tornou hospedeiro. Não é o homem que morre da doença do macaco. É o macaco que morre da doença do homem.

A despeito disso, macacos que escapam do vírus têm sido atacados e mortos por gente com medo da febre. Na semana passada, um barbado foi morto a tiros em Realeza, em Minas.

— É uma barbaridade que só vai agravar as coisas. Pois o macaco é uma sentinela. Ele é tão vítima quanto nós — lamenta Sérgio Lucena.

Ele lidera uma força-tarefa de cerca de 20 pesquisadores que passam os dias nas matas para localizar carcaças e bandos sobreviventes e trabalha em colaboração com a vigilância sanitária. Buscam descobrir a causa e a origem da epidemia.

Na semana passada, numa encosta íngreme da Serra dos Pregos, em Santa Teresa, Lucena, o técnico ambiental Rogério Ribeiro dos Santos e a estudante de Biologia Bruna Pacheco Pena tentavam acompanhar sem sucesso um filhote de barbado, cuja mãe morrera.

— Ele não tem salvação. Se não adoecer, gaviões ou cobras o apanharão. Não é o primeiro filhote que vemos órfão. Por algum motivo, os adultos parecem estar morrendo primeiro — diz Santos.

O filhote desapareceu, mas os gemidos de outro remanescente do bando foi ouvido ao longo do dia. Um macho agonizante ainda estava nas redondezas.

— Tem sido assim nas últimas semanas. Encontramos apenas carcaças ou alguns poucos sobreviventes dos bandos, quase sempre doentes ou filhotes órfãos. E isso em várias partes do estado. Há macacos morrendo no Parque Nacional do Caparaó, em reservas biológicas, nas bordas das roças, o vírus se espalha depressa — explica Lucena.

O lavrador Waldir Henker, da comunidade de imigrantes pomeranos da Serra dos Pregos, se aproxima para conversar com os pesquisadores. Henker, de 44 anos, fala português com forte sotaque pomerano, mas nasceu na região. Sua comunidade mantém o dialeto de origem germânica e tem nomes próprios para designar os macacos, parte de seu cotidiano entre a roça e a floresta.

— Nunca vimos algo assim. Estamos preocupados. Os macacos eram tão comuns. Eles sumiram há três semanas. Você pode entrar na mata que não vai achar. Não cantam mais — lamenta.

O lamento de Henker encontra eco em Minas. Dono da mais poderosa voz da floresta atlântica, o barbado não canta mais para a chuva. Famoso por “cantar” ou rugir quando o tempo muda, sua voz reverberava por quilômetros. No Leste de Minas, desde dezembro, não mais. Após três anos de seca severa, as chuvas voltaram na primavera de 2016. Mas em dezembro, na região de Caratinga, não havia mais macacos para cantar a chuva.

— Eles chegavam até as árvores atrás das casas e faziam festa quando o tempo mudava. Era tão bonito. Sinto falta deles. Fiquei doente com febre amarela, mas os macacos não têm culpa. A culpa é dessa praga de mosquito que nos inferniza a vida — afirma Claudinei da Silva Campos, de 36 anos, que adoeceu em janeiro.

O também primatologista Fabiano Rodrigues Melo, professor da Universidade Federal de Goiás, observa que no passado alguns surtos causaram extinções locais de macacos no Sul e no Centro-Oeste do país, mas nada da dimensão observada agora.

— O vírus tem se espalhado depressa e matado um número impressionante de animais. Vacinar os macacos é quase impossível. E a floresta toda está ameaçada, pois os macacos são fundamentais para o equilíbrio da Mata Atlântica. Eles dispersam sementes. Tudo está interligado — frisa.

Os macacos são conhecidos como engenheiros das matas, importantes para a distribuição das árvores e, com isso, dos demais animais que dela dependem.

— A situação é grave porque acomete um bioma frágil. Restam cerca de 12% da Mata Atântica, 83% dos quais são fragmentos com menos de 50 hectares, o que só dificulta a recuperação. Para piorar, a Mata Atlântica foi extremamente degradada no Vale do Rio Doce. Os macacos são fundamentais, têm impacto sobre a floresta inteira — salienta Fabio Scarano, diretor-executivo da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS) e um dos maiores especialistas do Brasil na Mata Atlântica.

A diretora-executiva da Fundação SOS Mata Atlântica, Marcia Hirota, vê na matança dos macacos pela febre amarela um retrocesso nos esforços de recuperação ambiental:

— É muito triste ter mais essa tragédia. Está mais que na hora de o país entender que meio ambiente e sociedade são indissociáveis. A saúde da mata é a saúde de todos nós.

De volta às florestas da região central capixaba, Sérgio Lucena e seu grupo procuram entender por que a doença se espalha tão depressa. Cientistas veem na mortalidade dos macacos um desequilíbrio ambiental maior.

— A doença atravessou o próprio Rio Doce. Não sabemos como já que os macacos não fazem isso. Uma hipótese é o mosquito. Outra, o próprio ser humano infectado — diz Lucena.

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