RESUMO - A promoção do bem-estar dos animais de trabalho também promove o bem-estar dos seres humanos envolvidos com o seu aproveitamento. Apesar disso, os médicos veterinários (MV) estão à margem desse processo. Este trabalho abordou questões éticas envolvidas no uso de animais de trabalho, com ênfase em animais de tração utilizados no Brasil, reforçando a importância do MV neste setor. Primeiro, foi exposto um histórico resumido da domesticação e do aproveitamento dos animais para o trabalho. Segundo, as importâncias econômica, ambiental e social desse aproveitamento foram listadas. Terceiro, foram apresentadas suas condições de trabalho mais comuns. Quarto, os principais questionamentos éticos e sistemas filosóficos envolvidos foram exibidos. E finalmente, as alternativas e melhorias no uso de animais de trabalho foram tratadas.
CONDIÇÕES DE TRABALHO E OS LIMITES IMPOSTOS AOS ANIMAIS
Principalmente nos países em desenvolvimento, onde as questões do bem-estar animal (BEA) e da senciência não estão difundidas, animais de tração sofrem maus tratos de inúmeras formas, sendo negligenciados inclusive pela classe médico veterinária.
Dentre as formas de agressão, ocorrem estresse e tensão excessivos criados pela sobrecarga intensa, contusões e uso de instrumentos pontiagudos, como ferrões e chicotadas, para forçar os animais a trabalharem além de suas forças. Também, estes são privados por longas horas de alimentação (de má qualidade), incluindo ingestão hídrica, e descanso adequados, além da privação de liberdade comportamental. Mesmo animais doentes e em estado avançado de gestação são forçados a trabalharem (Ramaswamy, 1998; Toledo, 2005).
Após sua vida útil, ou são abandonados à própria sorte, o que é comum ocorrer com animais de carroceiros nos centros urbanos, ou são encaminhados para o abate de forma não-humanitária, muitas vezes este clandestino. Quando os animais são descartados, existe ainda o sofrimento adicional, por encontrarem-se doentes e/ou enfraquecidos (Ramaswamy, 1998; WSPA, 2006).
Os próprios arreios, e demais equipamentos tais como, arados, carroças e cangas são fabricados de forma rústica e inadequada, que ferem os animais e são ineficientes. O peso aplicado desnecessariamente no dorso de um AT reduz a eficiência do trabalho, sendo que para isso precisam gerar um esforço muito maior. Adicionalmente, o feitio das peças dos equipamentos que entram em contato com os AT geram desconforto e dor aguda, sua fricção e pressão na pele do animal geram feridas, como o mal de cernelha, cilheira e fístula de cernelha. Tradicionalmente, na América do Sul, as cangas são apoiadas nos chifres dos bovinos e bubalinos e lesam sua nuca, formando calosidades (Hovell, 1998; Ramaswamy, 1998).
A população urbana de equídeos, ao serem utilizados pelos carroceiros, ainda possuem comumente, problemas de claudicação, estresse, risco de acidentes de trânsito, más condições de hospedagem e condução realizada por carroceiros destreinados. A claudicação é exarcebada pelo deslocamento no asfalto, rígido e frequentemente quente (Houpt, 2001).
Recomenda-se que em uma jornada de trabalho de equídeos de tração, deve haver um mínimo de dois intervalos para descanso do animal, devendo dar início às sete horas até às quatorze horas. Além disso, o peso máximo da carga deve ser de 100 a 150 Kg por viagem, pois somados aos 100 Kg médios da carroça, o animal tracionará cerca de 200 a 250 Kg de peso (Toledo, 2005).
Conforme Simalenga & Pearson (2003), vacas bovinas utilizadas na geração de força de trabalho devem ter alguns requisitos respeitados: Dentre elas, melhor qualidade dos alimentos quando estão trabalhando e que não trabalhem um mês antes e após o parto. Através disso, as “Cinco Liberdades” de estarem livres de fome e sede, desconforto, dor, lesões e doenças, medo e estresse e inclusive a liberdade de expressar comportamento normal serão respeitadas, gerando um melhor BEA e maior ganho para o produtor (Broom & Molento, 2004; Molento, 2005; WSPA; 2006).
Nos estudos de Maranhão et al. (2006) foram determinadas as afecções do aparelho locomotor mais frequentes em equídeos de tração do município de Belo Horizonte, MG. Houve, tanto nos membros torácicos quanto pélvicos, uma alta incidência de tendinite, tenossinovite, lesões osteoartríticas e desmite do ligamento suspensório. Segundo esses autores, possivelmente o principal fator predisponente seja o excesso de peso na carroça ou a tração de carroças sob uma maior velocidade, indicando haver esforço excessivo, agravado pelas práticas de casqueamento e ferrageamento inadequadas. Sobre o manejo alimentar dos equídeos de tração da regional Pampulha desse mesmo município, Filho et al. (2004) demonstraram que a alimentação destes animais está aquém do necessário. Esses dois trabalhos dão uma dimensão das condições de trabalho impostas a essa população de animais.
Os maus tratos aos animais de trabalho são antes de tudo um problema sócio-econômico e cultural. Produtores rurais e carroceiros além de muitas vezes não terem consciência da senciência e dos direitos dos animais (ou se possuem no sentido prático da palavra se tornam insensíveis a eles), enxergando-os como máquinas, recorrem a métodos cruéis de obter mais trabalho dos AT, por que de outra forma estes e suas famílias iriam morrer de fome. Eles próprios ganham a vida com extrema dificuldade (Ramaswamy, 1998; Pritchard et al., 2005).
ASPECTOS E QUESTÕES ÉTICAS
A discussão sobre as diferenças entre homens e animais ocorre desde centenas de anos atrás. Pitágoras (582-500 a.c.) era defensor da metempsicose, doutrina em que uma mesma alma pode animar diversos corpos, animais, homens ou até mesmo vegetais. Então na visão do filósofo, todas as criaturas deveriam ser respeitadas (Raymundo & Goldim, 2002).
Senciência é a capacidade de ter sentimentos, que são estados mentais, como sensações ou emoções. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), escritor e filósofo francês, desenvolveu a idéia de que os animais eram sencientes mas não possuíam razão. Já em “Emile” (1762), ele afirmou que os animais podiam formar idéias (Dunlop & Williams, 1996).
Existem evidências científicas de que os animais sejam sencientes. Tais como, estudos comportamentais no laboratório ou a campo, e a teoria evolucionista, em que os animais como os primatas não-humanos e os serem humanos descenderiam de um ancestral comum (Paixão, 2001). Existem semelhanças neuroanatômicas e fisiológicas, o que indica haver sentimentos compartilhados entre essas espécies (Dunlop & Williams, 1996; Neta, 2004). Segundo Bateson (2004), a complexidade neural e comportamental no reino animal é de grau e não se ocorre ou não, categoricamente.
Em 1997, na União Européia, os animais foram elevados ao status de seres sencientes através do Tratado de Amsterdã. Algo que pode levar ao desenvolvimento da pesquisa em bem-estar animal, às maiores exigências socioculturais, políticas e comerciais além de erigir a importância de se respeitar os desejos e necessidades animais à países onde conceitos de BEA são desconhecidos ou ignorados (Lund et al., 2006).
O uso de animais de trabalho a favor dos seres humanos constitui um dilema ético, gerando discussões éticas, legais e morais. O status moral e o valor intrínseco dos animais frequentemente não são levados em consideração e estes são, em sua maioria, subjugados frente ao desejo de enriquecimento econômico e à necessidade de sobrevivência dos seres humanos. Há alguns anos e lentamente, esta realidade está se modificando, o que pode ser traduzido pelo surgimento da ciência de bem-estar animal e pela atuação de diversas organizações não governamentais em prol dos animais. Elas não surgiram do nada, são uma consequência da demanda da sociedade em geral, que cada vez mais se sensibiliza com o sofrimento dos animais.
Os animais não falam e, portanto não argumentam, por isso não podem reclamar seus direitos. Cabe então ao médico veterinário buscar alternativas viáveis que vá integrar tanto um tratamento mais ético e humanitário aos animais durante a exploração de seu trabalho, quanto facilitar o desenvolvimento social, cultural e econômico dos seres humanos. Infelizmente, como regra geral, essa classe profissional não tem consciência de seu potencial como articuladora entre os proprietários e tratadores, o governo, a comunidade científica e demais membros da sociedade. Isso em grande parte pela sua formação universitária básica deficiente nas áreas de BEA e ciências humanas tais como, economia, administração rural, deontologia, sociologia, filosofia, ética dentre outras, não se encontrando apta para tal desafio e oportunidade.
Os médicos veterinários precisam desenvolver sua responsabilidade frente aos animais, preparando-se melhor, inclusive para confrontar debates éticos, atualizando-se e associando-se a colegas da mesma classe e a profissionais de outras áreas, através de uma proposta multidisciplinar, e também a organizações não-governamentais, a fim de elevar o grau de bem-estar dos animais de trabalho e o desenvolvimento dos seres humanos. Também devem demandar que a Universidade prepare melhor seus futuros colegas, educando-os para serem melhor preparados e precursores da defesa dos direitos de uma melhor qualidade de vida dos animais.
A Universidade como formadora de profissões e sendo o cerne da comunidade científica possui a obrigação moral de através de projetos de extensão levar aos produtores rurais, aos carroceiros, ao governo e a demais membros da comunidade o conceito de bem-estar animal e colocar os projetos de associar produtividade e baixo sofrimento dos animais em prática. Também deve inserir na formação dos profissionais, sejam eles médicos veterinários, zootecnistas, economistas, filósofos, médicos ou seja lá que área do conhecimento for, os conceitos e suas aplicações práticas de ética, bem-estarismo e bem-estar animal.
A sociedade e seus representantes legais, como o governo, devem também cumprir seu papel. É praticamente impossível controlar em toda parte e todo lugar os abusos contra os animais, por isso a população deve por si só respeitá-los e denunciar às autoridades casos de maus tratos frente aos mesmos, mais especificamente aos de trabalho, facilitando assim que as leis sejam cumpridas. O governo, por outro lado, deve criar leis mais efetivas, realistas, regulamentá-las e principalmente, fazer com elas sejam cumpridas.
[Working animals and ethical aspects involved: a critic review]
Acta Veterinaria Brasilica, v.5, n.1, p.33-40, 2011
Lilian de Rezende Jordão1, Rafael Rezende Faleiros2, Hélio Martins de Aquino Neto3
1 Departamento de Zootecnia, Escola de Veterinária, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.
2 Departamento de Clínica e Cirurgia Veterinária, Escola de Veterinária, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.
3 Universidade Federal de Alagoas, Campus de Arapiraca, Viçosa, AL.