A relevância do tema
Difícil apagar da memória as dolorosas imagens de animais puxando carroças, a cumprir em silêncio – sob açoites e chibatadas - sua triste sina. Nas ruas da cidade ou na imensidão dos campos, cenas assim ainda se veem com alguma freqüência. Cavalos esquálidos, burros e jumentos fatigados, bois que trabalham à base de vergastadas, atrelados em juntas, todos eles costumam ser usados nos serviços de tração até o limite de suas forças. Se em um passado não muito remoto, tamanha crueldade era aceita ou simplesmente tolerada, mesmo porque a população dependia do transporte animal, hoje isso não mais deveria ocorrer. Ainda que se tente justificar o uso de veículos de tração animal como meio legítimo de sobrevivência das pessoas pobres ou daquelas para as quais o subemprego tornou-se único meio de vida, a voluntária inflição de abusos e maus tratos será sempre uma conduta reprovável.
Fustiga-nos a consciência toda vez que um carroceiro estala o chicote no lombo de seu animal. Dói-nos também ver a indiferença dos transeuntes, que a tudo assistem impassíveis. Uma situação imoral, em que cavalos, jumentos e burros são utilizados como instrumentos para atingir fins que lhes são estranhos. Sua rotina invariavelmente permeada pelo padecimento consiste em carregar pela cidade materiais e mercadorias diversas, areia, madeira, entulho. No caso dos bois de carro, usados nas lidas campestres, a de arrastar imensos arados pelo pasto, ou a de movimentar continuamente as rodas de engenho. Sob sol ou chuva, faça calor frio ou faça frio, em meio à balbúrdia dos motores e das buzinas, pouco importa, o animal de tração é levado à labuta sempre que seu dono assim o quiser. Também éguas prenhes são forçadas a puxar carroças, sofrendo com a brutal exploração até o dia do parto (caso não sofram, antes, um abortamento). Depois, postas outra vez para acasalar, acabam retornando ao trabalho.
Essa, em síntese, a vida miserável de todos os animais utilizados em serviços de tração. Se porventura eles resistirem às intempéries do ofício servil, chegando à velhice, seu destino dificilmente será outro que não o abandono cruel ou o matadouro, sem a possibilidade de serem mantidos tranquilos em um pasto, até o fim de seus dias.
Por mais paradoxal que possa parecer, o Brasil – embora rotulado ´país em desenvolvimento' – possui uma legislação ambiental bem avançada. A vedação à crueldade para com os animais está prevista na própria Constituição da República, artigo 225 § 1o, VII, mandamento este assimilado pela Lei federal n. 9.605/98, ao criminalizar a conduta daqueles que abusam, maltratam, ferem ou mutilam animais (artigo32). Também está na Constituição, artigo 127, que a defesa da ordem jurídica incumbe ao MinistérioPúblico, órgão encarregado da proteção do meio ambiente e dos interesses difusos e coletivos. Não obstante isso, já previa o Decreto federal n. 24.645/34 que os animais "serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público..." (art. 2o, § 3o). Atualmente, estendido o conceito de fauna a todas as espécies que habitarem o solo brasileiro e, cancelada a Súmula 91 do Superior Tribunal de Justiça, firmou-se o entendimento de que os crimes praticados contra os animais – afeitos, em regra, à Justiça Estadual – devem ser submetidos à apreciação do Promotor de Justiça. O problema relacionado ao uso – e, de modo correlato, ao abuso - de animais utilizados em serviços de tração, não se mostra tão simples de resolver. Se de um lado há normas legais que permitem considerar como procedimento agressivo, por exemplo, atrelar animais às carroças e forçá-los ao trabalho pesado, de outro lado existe o argumento de que o simples uso do animal, sem abusos, seria legitimo.
Não bastasse isso, as vicissitudes sócio-econômicas de um país de contrastes tendem a influir nesse julgamento, como se a pobreza do carroceiro e daqueles que dependem dele legitimasse a servidão animal. Outros aspectos, não menos relevantes, versam sobre o pouco conhecimento das regras de trânsito pelos condutores de Veículos de Tração Animal (VTA), que trafegam com carroças de forma irregular e confiando, às vezes, seu controle a menores de idade. Sem falar que as leis de proteção animal são ignoradas por eles e também pelo Poder Público, tanto que nem sequer um serviço de assistência veterinária gratuita existe nos municípios. Em suma, a exploração dos animais de tração decorre das desigualdades sociais que geram pobreza e desinformação, bem como de um sistema educacional falho. Isso somente pode ser combatido com sérios programas de governo, algo que dê ao homem marginalizado a possibilidade de participar dignamente do mercado de trabalho, resgatando-lhe a cidadania perdida e diminuindo, conseqüentemente, os índices de exclusão social.
Foi com os olhos voltados ao futuro que a Promotoria de Justiça de São José dos Campos, diante dos flagrantes abusos cometidos contra os animais utilizados em serviços de tração, decidiu agir. Inspirado no princípio da precaução e sem perder de vista que o animal – como criatura sensível que é – também merece nossa consideração e respeito, celebrou-se com a Prefeitura o Termo de Ajustamento de Conduta objeto da presente tese. Sua finalidade, longe de se restringir aos ditames legais que envolvem a questão (Lei Ambiental, Código de Trânsito, Estatuto da Criança e do Adolescente, etc), assume inegável importância social e pedagógica, porque comprometida com uma mudança de atitudes e de comportamentos. Não se pretende, com ele, cercear o trabalho de gente humilde ou desfavorecida pela sorte, mas apenas não compactuar com abusos, maus tratos, omissões e desesperanças, fazendo despertar nas pessoas a consciência ambiental e os valores éticos até então adormecidos.
II. Retrospectiva histórico-legislativa
Teria sido no século XVI, início da colonização, que os primeiros animais domésticos desembarcaram em solo brasileiro. Há quem diga que isso se deu em 1534, quando Ana Pimentel – esposa de Martim Afonso de Souza – trouxe vários ruminantes na caravela "Galga". Outros asseguram que naquela época o comandante Aires da Cunha introduzira em Pernambuco pouco mais de uma centena de cavalos oriundos da Europa. Essa primazia, para determinados historiadores, coube a Tomé de Souza, ao chegar da ilha de Cabo Verde com gado vacum a bordo de sua esquadra. Polêmicas à parte, uma coisa é certa: a história da colonização brasileira deve muito a esses animais, utilizados na pecuária, na lavoura, nas expedições bandeirantes sertão adentro e nos transportes em geral. Enquanto o carro de boi arrastava seu arado pelos canaviais e movia a roda dos engenhos, mulas e jumentos atravessavam vales e montanhas. No lombo dos burros e dos cavalos, vale lembrar, os colonizadores abriram aquelas que seriam as primeiras estradas brasileiras.
Se a verdadeira história do Brasil foi escrita com sangue, suor e lágrimas, sua saga também deve ser ilustrada por chibatas, bridões, cabrestos e cangalhas. Durante quase quatro séculos o gado ajudou a povoar o sertão, levando o criador e o vaqueiro e se fixarem no interior, ao passo em que os cavalos tornaram-se meios de transporte, época em que não se fazia distinção entre escravos ("peças") e animais ("semoventes"). O desenvolvimento das vilas e das cidades, portanto, muito deve ao trabalho dos bovinos, dos muares, dos eqüinos e dos asininos, embora esses animais nunca tivessem o justo reconhecimento por parte daqueles que lhes tanto exploraram. Durante o período colonial e nos primórdios da era republicana, com a difusão dos veículos movidos a tração animal, eram comuns os atos de abusos e maus tratos cometidos pelos cocheiros, cavalariços e condutores, que permaneciam impunes. A indiscriminada utilização, nos cavalos, de instrumentos ofensivos como a gamarra, o bridão, o bocal e os antolhos, assim como a submissão desses animais ao poder ofensivo de varas e chibatas, para que não esmorecessem em seu trabalho escravo, ensejou protestos de gente que se condoia com o sofrimento animal. Vale dizer, a propósito, que até trinta anos antes da proclamação da República os bondes do Rio de Janeiro eram puxados por jegues.
O Código de Posturas do Município de São Paulo, de 6 de outubro de 1886, parece ter sido pioneiro em tratar de um assunto relacionado à proteção dos animais, conforme se verifica de seu artigo 220: "É proibido a todo e qualquer cocheiro, condutor de carroça, pipa d´água, etc, maltratar os animais com castigos bárbaros e imoderados. Esta disposição é igualmente aplicada aos ferradores. Os infratores sofrerão a multa de 10$, de cada vez que se der a infração". Surgia assim, pela primeira vez no Direito brasileiro, um dispositivo que se dispunha a defender os animais de abusos, como que antecipando a perspectiva jurídica que se firmaria apenas no século seguinte. Porta-voz dos oprimidos e célebre por seu engajamento na causa abolicionista, o republicano José do Patrocínio (1854-1905) tratava em seu último artigo justamente do tema relacionado ao martírio dos animais escravizados: "Eu tenho pelos animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma. Ainda que rudimentar, e que eles sofrem conscientemente as revoltas contra a injustiça humana. Já vi um burro suspirar como um justo depois de brutalmente esbordoado por um carroceiro que atestara o carro com carga para uma quadriga e queria que o mísero animal o arrancasse do atoleiro" (citação de João Guimarães, no livro "Patrocínio, o abolicionista", Edições Melhoramentos, São Paulo, 1967). Sentindo-se mal em meio ao texto, Patrocínio morreria em seguida. Foram essas, portanto, as palavras definitivas do jornalista que fez da busca da liberdade a sua razão de viver. No século XX, enfim, foi editado pelo Governo Provisório o Decreto n. 24.645/34, proibitivo da prática de maus tratos aos animais.
Dentre as condutas passíveis de enquadramento penal foram incluídas as seguintes: praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal, golpeando-o, ferindo-o ou mutilandoo; manter animais em lugares insalubres; sujeita-los a trabalhos insalubres; abandonar animal doente ou ferido; atrelar animais, em condições irregulares, nos veículos de tração e carroças, bem como infligir-lhes castigos imoderados; utilizar dos serviços de animal enfermo e, se sadio, fazê-lo trabalhar sem descanso ou alimento suficientes. Todas essas hipóteses delitivas podem ser invocadas contra aqueles que maltratam animais usados em serviços de tração. O fato de esse decreto ter tido pouca aplicação no meio jurídico bem retrata o paradigma antropocêntrico enraizado, décadas a fio, no modus vivendi ocidental, que se ressente de um devido questionamento ético.
Vê-se, desde os bancos escolares, um ensino que prioriza a competitividade e o utilitarismo, com explicações racionalistas sobre tudo o que viceja e pulsa ao nosso redor. A verdadeira Educação Ambiental, que segundo a percuciente visão de JOSÉ KALIL DE OLIVEIRA E COSTA, "pode suprimir muitos dos vazios ideológicos desse tempo de extremismos políticos, desperdício de recursos ambientais, exageros de produção e consumo" , ainda está por vir, como que acenando para um caminho capaz de "mitigar muitos dos entraves decorrentes da inação ou de ações contrárias aos valores ambientais, a baixa qualidade de vida e a exclusão a que o povo têm historicamente se submetido" (in "Educação Ambiental, um Direito Social Fundamental", Anais do 6o Congresso
Internacional de Direito Ambiental, de 03 a 06 de junho de 2002, São Paulo).
Um Termo de Ajustamento de Conduta que se propõe primeiro a minimizar o sofrimento das criaturas escravizadas pelo homem para, depois, livrá-las de seus injustos padecimentos, depende da eficácia de medidas sociais e educativas. Ações que possam despertar consciências adormecidas e que mostrem, àqueles que ainda descobrem o mundo, que toda vida é sagrada e que os animais, porque seres sencientes, merecem ser incluídos na esfera de nossas preocupações morais.
Laerte Fernando Levai
Promotor de Justiça de São José dos Campos