“Quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte (…). Quem grita, vive contigo.” (Ronaldo Bastos)
Há muito o que se pode fazer pelos animais. Mas o mais básico de tudo, antes de se fazer manifestações, passeatas, panfletagens, pressionar por leis, é se tornar VEGANO(A).
Veganismo, como defini anteriormente, é o boicote a todo e qualquer subproduto da exploração animal, não só a carne – inclusive a de peixe, que muitos “vegetarianos” admitem –, mas também leite, ovos, mel, seda, couro e peles em geral, além de produtos testados em animais. Teremos oportunidade de debater mais detidamente cada um desses itens. Por ora quero dizer por que devemos ser veganos.
POR UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA. Cometemos inúmeras violências contra os animais todos os dias, quando nos permitimos usá-los como a objetos inanimados, sem sensibilidade ou sentimentos. Tais violências são injustificáveis. Não podemos nos referir a elas senão como injustiças. Na pecuária, seja extensiva ou intensiva, industrial ou tradicional, os animais são explorados e mortos, descartados quando considerados inúteis, não há consideração pelos seus interesses. Nos laboratórios os animais passam por sevícias ininterruptas, sendo cegados, queimados, isolados, separados de suas crias, envenenados, mutilados, manipulados, e justifica-se isso em nome da ciência e do bem-estar da humanidade. Mas que bem-estar é esse que vem às custas de sofrimento?
POR UMA QUESTÃO DE NECESSIDADE. Sendo a exploração animal desnecessária, aboli-la torna-se, consequentemente, uma necessidade. Uma necessidade, inclusive, para o desenvolvimento pleno da humanidade e suas potencialidades. Aprendermos a preservar a natureza e a vida animal não é uma questão sentimental. É uma questão de justiça, como afirmei antes. E também uma necessidade prática: nossas ações predatórias comprometem a nossa existência, e a existência de muitas espécies de animais e plantas. A pecuária é nociva para o meio ambiente: para criarmos pastos, destruímos florestas, comprometemos a existência de fauna e flora selvagem. Os rebanhos emitem gases do efeito estufa, seus dejetos poluem rios e solo. Não há como alimentar 6 bilhões de seres humanos à base de alimentos de origem animal.
POR UMA QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA. É sintomático perceber que o ser humano, que se julga sábio, sensível, sublime, trata os animais com tamanho descaso, desrespeito, desprezo. Será que podemos mesmo aspirar justiça, liberdade, paz, enquanto somos tiranos para aqueles sobre os quais podemos exercer nosso poder? Que tipo justiça existe apenas quando somos impelidos pela lei nos códigos ou livros sagrados a agir moralmente apenas para não sermos punidos ou, em contrapartida, recebermos graças? Só poderemos viver numa sociedade livre e justa quando justiça e liberdade forem valores em si para o ser humano, e não meras moedas de troca, meios para atingir a fins egoístas, sejam esses fins materiais ou transcendentais. Esse ponto foi muito bem ressaltado pelo escritor Milan Kundera em A Insustentável Leveza do Ser, seu mais famoso romance:
A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa ao nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras.
(KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 [1984], p. 325)
POR UMA QUESTÃO DE COERÊNCIA. Uma vez que tenhamos despertado para uma realidade, precisamos agir em conformidade com o que descobrimos. Conhecimento sem aplicação não tem qualquer valor – é mero exercício estético, soberba, “saber por saber”, egocentrismo. O conhecimento implica responsabilidade. E aí reside simultaneamente a solução e o problema. Solução porque o ser humano deve aprender a ser responsável. Responsável por seus atos, por seus semelhantes, pela sua morada. Mas ele também aprendeu a aceitar sem questionar a realidade que lhe é imposta. Acomodar-se. Nesse sentido, o governo é também uma benesse e uma maldição. Pois o ser humano se sente mais seguro tendo um governo para delegar responsabilidade e pôr a culpa.
É inquietante saber que podemos fazer algo a partir de nós mesmos, no nosso cotidiano, que muitas injustiças dependem apenas de nós para acabarem. Que a preservação do planeta também depende de nós. Que mesmo as relações interpessoais têm muito a ver com o tipo de mudança que queremos no mundo. Não adianta aspirarmos por paz, liberdade, igualdade, se não as praticamos no dia-a-dia, com nossos semelhantes: se somos autoritários, oportunistas, egoístas, aproveitadores, arrogantes, desrespeitosos, possessivos, mesquinhos, manipuladores… Como esperar que haja justiça no mundo?
E isso também se refere aos animais não-humanos. Conscientes da exploração de que são vítimas, devemos refletir sobre o que podemos fazer para impedir que esse massacre continue, sob pena de nos tornarmos cúmplices.
É isso que quero fazer com estes textos. Despertar consciências para uma realidade atroz, a necessidade de mudá-la e a possibilidade concreta de, individualmente, fazermos algo para que essa mudança ocorra tão breve quanto possível.
O veganismo nos desperta, assim, para muito mais além da triste realidade da exploração animal: ele nos desperta para o poder transformador e libertário presente no ser humano, em cada indivíduo. Um poder que traz consigo a responsabilidade de agir de acordo com ele: não basta querer que as coisas mudem; é preciso mudá-las em nós mesmos, e assim o fazendo, teremos certeza de que estamos contribuindo para que mudem definitivamente em toda a sociedade, em todo o planeta.
Bruno Müller
Historiador, doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.