Convite à reflexão
O fenômeno biológico da dor, ao contrário do que se imaginava no passado, é semelhante nos homens e nos animais. As reações físicas de um animal ferido, na realidade, pouco diferem do ser humano nas mesmas condições: gritos, contrações, gestos de defesa ou de ataque, tentativa de fuga, etc. Se apenas a espécie dominante pode expressar seu sofrimento por palavras, isso em nada diminui a angústia daqueles que não têm como dizê-lo. É que o medo e a dor são universais, podendo ser facilmente percebidos diante de procedimentos agressivos. Algumas das explicações científicas associando as ações dos animais unicamente aos instintos, assim como as justificativas antropocêntricas para a submissão das criaturas não humanas, acabaram legitimando – seja na Ciência, seja no Direito – um modelo de comportamento que prima pela indiferença.A questão ética, nesse contexto, é sempre ignorada. Alega-se que a suposta graduação intelectual entre as espécies serve de parâmetro para conferir aos homens a exclusividade de obter direitos, como se os animais fossem insignificantes do ponto de vista moral. Nada mais injusto.
Se a Ciência tem o animal como "objeto de estudo" e o Direito o classifica como "coisa" ou "recurso ambiental", ambos mostram-se cegos diante da realidade sensível e única que é a vida. Mas, ao contrário do que parece à primeira vista, o legislador constitucional - ao tratar do assunto relacionado à fauna - não se restringiu à perspectiva antropocêntrica que permeia nossa Carta Política.Para se chegar a tal conclusão basta uma leitura atenta do artigo 225 § 1o, VII, da CF de 1988, que dispõe: "Incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade" . Ora, se a própria constituição brasileira veda condutas cruentas para com os animais, é porque os reconhece – ainda que implicitamente – como seres viventes capazes de sofrer, não apenas objetos de exploração. Uma coisa é a garantia da função ecológica, outra coisa é a da variedade das espécies e, outra ainda, é a da proteção animal contra ações cruentas. Este mandamento, portanto, não se limitou a assegurar a biodiversidade ou a função ecológica da fauna. Adentrou no campo da moral. Ao impor expressa vedação à crueldade para com os animais, como que reconhecendo nossa natural propensão ao sadismo, o legislador admitiu a possibilidade de o animal ser considerado sob a perspectiva ética, como sujeito jurídico passível de tutela ou representação processual.
Há, afinal, manifestações e sentimentos comuns a homens e animais, que prescindem da dogmática jurídica para serem reconhecidos. O Direito de ambos existe, independentemente da condição daqueles que podem, ou não, invocá-los. Acerca do tema, ANTONIO HERMAN BENJAMIN deixou consignada sua valiosa opinião: "Nos últimos anos vem ganhando força a tese de que um dos objetivos do Direito Ambiental é a proteção da biodiversidade (fauna, flora, ecossistemas) sob uma diferente perspectiva: a natureza como titular de valor jurídico próprio (...) O reconhecimento de direito aos animais – ou mesmo à Natureza – não leva ao resultado absurdo de propor que seres humanos e animais tenham os mesmos ou equivalentes direitos..." (in "A Natureza no Direito Brasileiro: Coisa, Sujeito ou Nada Disso", São Paulo, edição da Escola Paulista do Ministério Público, 2001). O que se espera na atualidade, evocando aqui as palavras desse culto Procurador de Justiça, é uma "mudança de paradigma na dogmática jurídica", devolvendo-se aos animais o direito que se lhes tiraram pela força bruta. Sob a égide e a inspiração da Constituição Federal de 1988, surgiu no Brasil – dez anos depois de sua promulgação – a Lei dos Crimes Ambientais (Lei federal n. 9.605/98), cujo artigo 32 está vinculado ao mandamento supremo do artigo 225 § 1o, VII, daquela Carta Política.
Tal dispositivo infraconstitucional transformou em crime a conduta de crueldade para com os animais, estendendo seu alcance protetor a qualquer espécie animal: "Praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestre, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". É este o fundamento legal que nos permite processar e punir os malfeitores da fauna. Trata-se de um tipo penal de conteúdo misto ou variado. Abuso significa uso incorreto, despropositado, indevido e demasiado, ou seja, o mau uso. Por exemplo, os cavalos atrelados a pesadas carroças e também os bois que puxam o arado no campo, trabalhando de sol a sol, sob açoite. Maus tratos, por sua vez, é um vocábulo que se submete à moldura da sevícia, relacionando-se ao ultraje, ao insulto e à violência capaz de expor o animal a uma situação de sofrimento. Perfaz-se com a ocorrência de um ato agressivo em relação ao animal, independentemente da superveniência de lesões físicas ou da morte. Ferir, como o próprio verbo indica, é a ação que machuca e que ocasiona lesões, ofendendo a integridade física do animal.
Mutilar, por sua vez, traduz a conduta daquele que extirpa ou corta determinado órgão ou membro do animal. Todas essas modalidades agressivas podem ser resumidas em uma única expressão, crueldade, termo mais genérico e que reúne em si aquelas hipóteses, podendo exprimir quaisquer ações relacionadas à violência, à insensibilidade ou ao sadismo em detrimento dos animais. No que se refere, especificamente, aos animais utilizados em serviços de tração – cavalos, jegues, bois, jumentos – a ação do infrator, na maioria das vezes, consiste em abusar e maltratar. Manter o animal trabalhando sem descanso, privado de alimentação ou água suficientes, puxando cargas além de suas forças, sob pancadas com varas ou chicotes, são condutas que se enquadram na moldura do artigo 32 da Lei n. 9.605/98. O elemento subjetivo do agente é, em regra, o dolo direto ( vontade consciente de maltratar o animal), mas nas hipóteses de abuso pode haver dolo eventual (quando se assume o risco de produzir o resultado). Se o uso de veículos movidos por tração animal é previsto no Código de Trânsito e autorizado pelos costumes do povo brasileiro, o abuso contra os animais a eles atrelados torna-se
IV. Aspectos multidisciplinares
O uso de VTA, na zona rural ou urbana, é uma prática herdada da época colonial e que hoje predomina nas classes sociais de menor poder aquisitivo. Enquanto na cidade - apesar das limitações administrativas relacionadas aos locais de circulação de carroças (vedadas nas vias públicas de trânsito rápido e nas estradas) - não se vê nenhuma medida eficaz contra a crueldade, na roça a situação é ainda mais desoladora, ficando os animais à mercê da vontade do proprietário ou do condutor. Assistência veterinária aos cavalos, em termos práticos, soa como ilusão. Se o carroceiro mal possui recursos para manter a si e à sua família, como esperar que ele assuma despesas médicas para tratar de seu animal doente? Em artigo publicado na edição de 26/1/2000 do jornal "O Estado de São Paulo", o escritor PAUL JOHNSON pondera que, ao contrário do que ocorre com relação aos automóveis – objetos de metal e inanimados -, não existe preocupação legal em registrar os animais utilizados em carroças, embora nesta hipótese a tração seja realizada por um ser vivo.
Dever-se-ia, então, garantir documentação hábil a individualizar os animais, garantindo-lhes registro, assistência veterinária e uma garantia de libertação quando se tornarem eles inaptos para o trabalho. Outro ponto relevante ao tema é aquele referente à condução de carroças por menores de idade, adolescentes e até crianças, às vezes desacompanhados de adultos. Este fato guarda relação com o problema da evasão escolar e do trabalho infantil, além de incutir no jovem uma visão distorcida da natureza, como se as chicotadas no lombo do animal escravo fossem condutas absolutamente normais. Exercer algum controle sobre a carga transportada no VTA é outra coisa que a autoridade pública não faz. Quantas e quantas vezes, em meio ao trânsito urbano, não deparamos uma carroça carregada de entulho, cujo animal é impiedosamente açoitado pelo condutor para que se mantenha em sua marcha, sem atrapalhar o fluxo de automóveis? Outras vezes são os motoristas dos carros que, impacientes com a carroça à sua frente, buzinam para que o tráfego flua ou para que se lhe abra passagem, o que leva o carroceiro a descarregar sua raiva no animal subjugado. Ninguém se preocupa com a situação desses animais, nem com o peso - não raras vezes excessivo - da carga transportada, muito menos com suas condições de saúde ou com os abusos cometidos explicitamente pelo homem que traz o chicote nas mãos. Argumenta-se, para justificar tais omissões, que o uso de carroças está relacionado à pobreza. Que se ele for apreendida, ou o próprio animal, a família do carroceiro será ainda mais penalizada. Dizem também que, bem ou mal, a atividade daqueles que circulam com esses veículos pela cidade é uma forma de minimizar o desemprego e de contribuir para as campanhas de reciclagem de lixo. Na roça, quando a família não possui dinheiro para investir em tratores ou máquinas agrícolas, acaba recorrendo à força motriz do boi.
Não sendo a utilização de VTA, enfim, um trabalho ilícito, mas surgido dos contrastes econômicos de um País em desenvolvimento, seria um paradoxo punir as pessoas que recorrem a esse tipo de expediente para sobreviver. Nenhum desses argumentos, porém, serve para redimir a crueldade humana sobre os animais. Não se nega que aspectos de ordem econômica, social e pedagógica, além de ensejar a correta interpretação das leis e dos costumes, assumem particular relevância para o deslinde do problema. É claro que, se um cavalo ou um boi for submetido a abusos em serviços de tração, surge a figura típica do artigo 32 da Lei 9.605/98, delito de ação penal pública incondicionada. Há que se iniciar procedimento persecutório contra o autor do fato delituoso, sem prejuízo do resgate do animal maltratado. Nessa hipótese soa descabida eventual alegação de erro de direito ou de qualquer outra relacionada à miserabilidade do condutor, porque a crueldade é sempre injustificável e a suposta ignorância da lei, pelo infrator, não justifica ações delituosas.
Afora as implicações penais da questão, incumbe ao Ministério Público - em meio às suas múltiplas atribuições na área ambiental -, exercer a tutela jurídica dos animais, de modo que se faz possível investigar tais fatos em peças de informação ou mesmo por intermédio de inquérito civil, visando à celebração de Termo de Ajustamento de Conduta ou, então, à propositura de ação civil pública. Se no âmbito criminal a responsabilidade pelo delito do artigo 32 da Lei 9.605/98 toca àquele que maltratou o animal, na seara cível ela pode ser estendida à Municipalidade. Isso porque cabe à Prefeitura o dever de organizar e fiscalizar o sistema viário urbano, assim como o de propiciar a educação ambiental, a saúde pública e o desenvolvimento social, impedindo que animais domésticos - aqueles acostumados ao convívio humano - sejam maltratados. Os princípios da precaução em matéria ambiental e o da eficiência na administração pública informam essas medidas, as quais dependem da ação conjunta de várias Secretarias municipais.