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Controle Populacional do Javali – Pretexto para Liberação da Caça.

“A morte do animal na caça é sempre terrível. Ela chega de surpresa, sangrenta e dolorosa. A eliminação de um animal no vigor da sua vitalidade, abatido com a violência arrasadora da pólvora, é profundamente chocante e antinatural (…) o bípede racional que se arroga o direito de executar animais – em nome da nobreza e do esporte ou, um tanto hipocritamente, para equilibrar a ecologia – é o mesmo que, em nome de elevadas razões, desencadear guerras ao longo da história”.

(Luiz Carlos Lisboa)

Editada pelo Ibama, a Instrução Normativa nº03/2013, liberou a caça do javali, inclusive no Estado de São Paulo, como suposta forma de controle populacional dessa espécie. Com a brutalidade devastadora de rifles de grosso calibre, de uso autorizado pelo Exército, os caçadores estão livres para executar animais. Em 2013, 583 javalis foram abatidos no país, sendo 105 deles no Estado de São Paulo.

O javali europeu foi introduzido no país para sua exploração comercial, atividade que malogrou, resultando na soltura e na reprodução descontrolada desses animais. Matéria veiculada pelo jornal “O Estado de São Paulo”, de 2 de abril do corrente ano, trata do tema:

“Uma primeira leva chegou aqui, em 1989, vinda do Uruguai. Mas é da segunda que o ecossistema se ressente mais, quando espécimes foram importadas especialmente da França e do Canadá, sob o rótulo de sangue azul (…).O fato é que, nos idos de 1990, houve um boom de compradores, mas também de decepcionados com trabalho que o bicho dá.Vendido como rústico, ele tem lá suas idiossincrasias, como a necessidade de espaço.Para evitar fugas, o criador tem que levantar duas cercas, uma de 1,80m de arame na atura com 40 cm de alvenaria na fundura,e ainda reservar pelo lado de dentro uma área de trânsito para evitar brigas. Também precisa esperar em torno de oito meses para que suas crias atinjam os 40 quilos desejados pelos compradores, porte gastronômico ideal para extrair o pernil, a paleta, a coleta, o stinco, o carré. ‘Pessoas que chamo de desonestas acabaram cruzando o javali com o porco para acelerar o crescimento e a produtividade’, diz Toledo. Um javali autêntico dá quatro filhotes. Um javaporco, como dito,em média seis, e em quatro anos cada javardo pode chegar a 160 kg (…) Estimulados, ou por descuido, os javaporcos pularam a cerca e, sem predador natural, deu no que deu.”

Segundo matéria publicada na “Folha de São Paulo”, de 30 de agosto de 2016, existem cerca de sete mil cadastrados, em todo o país, para a prática dessa atividade, com utilização, inclusive, de armamento pesado, autorizado pelo Exército. Recente matéria veiculada pelo “Fantástico” mencionou a existência de doze mil cadastrados.

No Estado de São Paulo, a prática viola a Constituição do Estado, que em seu artigo 204, proclama:

“Artigo 204 – Fica proibida a caça, sob qualquer pretexto, em todo o Estado.”

Com efeito, os incisos II e IV do artigo 37 da Lei Federal nº 9.605/98, declaram não constituir crime o abate de animal, quando realizado “para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente ou por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente.”

Como excludentes de ilicitude, os incisos II e IV do artigo 37 da Lei Federal nº 9.605/98 deveriam ser aplicadas como medidas de exceção, e apenas diante da impossibilidade de utilização de método Menos gravoso.

No caso em tela, entretanto, tais excludentes estão sendo usadas para conceder permissão à caça, servindo de justificativa legal para a instituição dessa atividade, em todo o país, o que destoa da Constituição da República, que em seu artigo 225,§ 1°, inciso VII, enuncia incumbir ao Poder Público vedar as práticas que submetam animais à crueldade.

Não poderia o Poder Público fomentar a violência e a morte dos animais que, por norma constitucional, lhe incumbiria resguardar de qualquer prática cruel.

Se a norma constitucional não permite a submissão de animal à crueldade, e a própria Lei de Crimes Ambientais, em seu artigo 32, tipificou os atos de abuso, de maus-tratos, de ferir e de mutilar animais, decerto que o artigo 37, em seus incisos II e IV, não pode ser interpretado como permissivo da caça, sob pena de contrastar com a legislação pátria que rege a matéria.

Entendimento contrário conduziria à absurda conclusão de que a lei consente no abate de animais, mas pune quem deles abusa, ou os submete a maus-tratos, a ferimento ou a mutilações!

Se alguma espécie é tida por nociva pelo órgão competente, por ameaça a plantações, aos rebanhos ou pomares, medidas razoáveis e aceitáveis de controle populacional deveriam ser adotadas, em substituição à denominada caça de controle, prática que além de ser vedada pela Constituição do Estado, ainda incide na norma punitiva do art.32 da Lei Federal nº 9.605/98.

Como afirma o jurista EDIS MILARÉ, no mais das vezes, classifica-se como nociva uma determinada espécie para atender a interesses diversos daqueles que se baseiam na defesa do meio ambiente:

“A ressurreição do conceito superado de animal ‘nocivo’, que desconsidera toda a complexa teia de relações ecológicas entre as espécies, e remete à lixeira a visão holística do meio ambiente, escancara uma porta ao extermínio de qualquer população animal que, num dado contexto, possa prejudicar determinado interesse (…)”.(“Direito do Ambiente”, p. 466 ,São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2001).

Atribuiu-se nocividade ao javali para que seu abate fosse legalizado, permitindo-se, em todo o país, a caça sob a fachada de um suposto controle.

Quando o javali foi trazido ao Brasil para sua exploração comercial, a despeito da problemática representada por essa espécie em outros países, não houve consideração alguma sobre a sua suposta potencialidade nociva. Não se evitou, portanto, os riscos e a ocorrência dos danos ambientais relativos à criação do javali no país, violando-se o princípio da precaução, principal norteador das políticas públicas ambientais.

Há décadas, medidas eficazes de controle estão sendo relegadas. Ao contrário disso, criadouros ainda prosseguem em suas atividades, havendo, atualmente, cinco criadouros de javali autorizados pelo Ibama. Também não se conhecem medidas para coibir a existência de criadouros clandestinos.

Deve-se à ineficiência das autoridades o alto número de javalis, atualmente, existente, o que não pode, agora, justificar o cruel massacre dessa espécie, hoje tida como exótica invasora, até porque tal medida mostra-se contestável como forma de controle, já que a população dessa espécie permanece numerosa, apesar de perseguida e caçada, em muitas regiões, há mais de vinte anos, como é o caso do Rio Grande do Sul.

Outras medidas devem ser buscadas como propôs o então presidente do Ibama, Abelardo Bayma, ao revogar a Instrução Normativa n.º 71, de 04/08/2005, que autorizava o controle populacional do javali por meio de captura e abate em todo o Estado do Rio Grande do Sul:

“A proposição é que se busquem soluções de controle permanente, regularizando-se os criadouros com processos anteriores, evitando-se as criações clandestinas e estabelecendo-se os mecanismos que minimizem ou eliminem as possibilidades de disseminação da nocividade desta espécie, considerada praga no território nacional”, explica Vitor Hugo Cantarelli, coordenador de Gestão do Uso de Espécies de Fauna (Coefa/DBFlo). (http://www.ibama.gov.br/publicadas/ibama-revoga-instrucao-normativa-que-permitia-o-abate-de-javali)

Inexiste argumento que se preste a justificar a cruel prática da caça, sobretudo por meio de armas de fogo, que podem deixar animais alvejados em situação de agonia, por dias, antes do óbito.

Convém lembrar que a legislação tutela os animais, individualmente, considerados, o que independe de pertencerem, ou não, à uma espécie numerosa. Decorre daí que a existência de um grande número de javalis não pode ser tida como um salvo-conduto para matar.

E o uso de armadilhas, previsto pela Instrução Normativa nº3/2013, mostra-se igualmente cruel, uma vez que pode resultar em morte agônica do animal.

O “Jornal da Band”, da TV Bandeirantes, entre os dias 21 a 26 de setembro de 2015, uma série intitulada “Caça ao Predador”, em episódios que mostrou javalis e seus filhotes sendo alvejados, feridos ou mortos. Ao ser alvejado, um dos animais grita e tenta escapar, claudicando muito, o que aponta para a possibilidade de que ele tenha agonizado, por muito tempo, até a morte.

Cópia da série citada consta do link: http://goo.gl/1FJKNm, ou pode ser solicitada à emissora.

Matéria veiculada pelo jornal “O Estado de São Paulo”, de 2 de abril do corrente ano, bem evidencia a crueldade das atividades de um caçador, eufemisticamente chamado de “controlador”:

“ Saímos às 11h da noite para o meio da plantação numa Hilux adaptada. A gaiola tem assentos e está forrada de espuma para que Mardqueu possa apoiar seu fuzil customizado. Aliás, ele próprio está camuflado: não de samurai, mas de caçador de safári. Não deu meia hora para que chutasse a carroceria da pick up: “É porco! O carro parou. A luz do Cilibrim, farol de longo alcance, apontava um grupo de javalis. Foram quatro segundos para o primeiro tiro; menos que isso para o segundo estampido. Com cuidado, o grupo sai a pé iluminando o breu com lanternas. Ouvia-se um arruar agonizante, no início mais espaçado, depois mais curto. Mardqueu pediu que esperássemos um pouco, porque o javali ainda podia se levantar e partir para o ataque. Aquele tipo de respiração indicava que ele acertara no pulmão, não ia demorar. Pouco depois, o controlador entrou no canavial e, com um revólver 44 mm, deu um tiro na cabeça do animal. Ao contrário do que previam, não era um cachaço, mas uma fêmea. O comportamento padrão delas é acompanhar o grupo, não se distanciar dele, como fez durante a perseguição. Tinha uns 60 quilos e estava prenhe. A tropa ainda acertaria um javali jovem, de uns 30 quilos, depois de uma rodada de muitos quilômetros movida a café e a óleo diesel.”

Disfarçada de manejo, a prática da caça é o deleite para o caçador, como menciona a referida matéria do “Estadão”:

“De seu lado, Mardqueu reconhece que os controladores estão ‘enxugando gelo’, enquanto a discussão ficar só nisso. Mas também reconhece que, como instrutor e campeão de tiro, os javalis são um alvo mais interessante que as aves que abatia nos ares do Uruguai.”

E a liberação da prática importa em sofrimento e morte também para os cães, utilizados em 80% das atividades de caça, eufemisticamente chamada de “controle” conforme a matéria acima citada:

A matéria denominada “Com arapucas e jaulas, caçadores tentam conter avanço dos javalis (http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2014/09/com-arapucas-e-jaulas-caçadores-tentam-conter-avanço-dos-javalis-4608521.html#) dá uma ideia da barbárie representada pela caça do javali:

“A caça com armas de fogo e cães, no entanto, é a mais praticada – de forma legal ou clandestina. Sabujos e javalis machos se atracam em lutas brutais, as quais resultam em mortos e feridos. Caçadores chegam a pôr coletes nos cachorros. Usam borracha de pneu ou couro para tentar evitar que sejam destripados ou degolados pelos caninos dos javalis – os inferiores podem medir 10 centímetros.”

E matéria veiculada pelo “Fantástico”, em 10 de julho último, evidencia não só o sofrimento dos animais, mas aborda a completa falta de fiscalização do Ibama sobre a caça que autorizou e a absoluta inexistência de dados sobre a suposta eficácia da prática para o controle populacional do javali.

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