A entrevista foi publicada por ANDA, 28-01-2016.
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Como se deu seu contato com a Ética Animal e os Direitos Animais?
Meu contato se deu a partir da leitura do livro Ética Prática, de Peter Singer, durante o curso de graduação em Filosofia da UFRGS. Eu já era vegetariano naquela época e argumentação de Singer era o que me faltava para dar um enquadramento formal às minhas intuições animalistas. Aliás, muitos acadêmicos e ativistas ao redor do mundo despertaram para a questão animal através de Singer. Esse fato, por si só, já o coloca na galeria dos campeões da defesa animal – independentemente da (in)adequação teórica do utilitarismo nessa defesa. As pessoas tendem a esquecer isso. Outras nem sabem disso por terem começado a se envolver com a Ética Animal apenas recentemente.
Na época em que iniciei meus estudos animalistas, não havia nenhum evento em Ética Animal no Brasil, apenas congressos bem-estaristas promovidos pelas faculdades de Veterinária. Fui a muitos deles, porque era o que se tinha para se ouvir falar sobre a situação dos animais. Anos mais tarde, recebi uma bolsa de estudos para ir a Cambridge, Inglaterra, e lá fui apresentado finalmente à Ética Animal propriamente, de alto nível, e ao ativismo animalista profissional.
Em sua obra “Ética & Animais”, o Sr. indica quatro teorias que defendem os animais – utilitarismo (Singer), Direitos (Regan), Dorismo (Ryder) e Ética do Cuidado – e mais duas que podem ser adaptadas para isso como Deveres (Taylor) e Alteridade (Lévinas). O que o levou a escolher essas correntes éticas e não outras?
Escrevi “Ética & Animais” em 2004/2005. À época, as perspectivas mencionadas no meu livro me pareciam as mais promissoras para a defesa filosófica dos animais. De lá para cá, ao longo dos últimos 10 anos, um corpo significativo de outras abordagens foi produzido. Essas outras concepções serão tratadas no meu próximo livro, que está sendo escrito.
Em seu artigo “Ética animal… Ou uma ‘ética para vertebrados’?: Um animalista também pratica especismo?” o sr. pontua o limite teórico de Singer e de Regan na defesa dos animais. Já em “Bem-estar animal ou libertação animal? Uma análise crítica da argumentação antibem-estarista de Gary Francione”, sua crítica se direciona a Francione. É sabido que esses três autores são as principais referências dos defensores dos direitos animais no Brasil, logo, segundo suas críticas, poderíamos dizer que o movimento animalista brasileiro se sustenta sobre um fraco alicerce?
Tanto Singer quanto Regan, nas suas obras, utilizam uma terminologia enganadora: ambos apresentam teorias animalistas que não tratam de animais propriamente ditos, mas apenas de uma ínfima parte desse grupo, isto é, os vertebrados. A posição corrente da Zoologia é a de que somente vertebrados (além dos cefalópodes) são sencientes, porque somente eles dispõem de um sistema nervoso central. Ou seja, Singer e Regan estão falando de proteger apenas 2% das espécies de animais no mundo. Mesmo levando em conta que se trataria de condições suficientes, mas não necessárias, de considerabilidade moral, importa aqui notar que essa imprecisão terminológica não é nada ingênua. Aliás, não apenas eles, mas a maioria dos animalistas também a adota. Digo que não é um mero equívoco vocabular porque parece haver um pressuposto sorrateiro, não assumido, de que a senciência não é mesmo o demarcador moral último.
Minha posição pessoal é a de que há algo de errado no esbanjamento da vida dos insetos, por exemplo. Na morte gratuíta de uma borboleta, na destruição intencional de um besouro – se não houver uma razão (moral) suficientemente forte para justificar a morte desses e de outros insetos (além dos moluscos, crustáceos, etc.). O fato de que a borboleta é bonita e o besouro é nojento não fornece tal justificativa. Mesmo que o animalismo não assuma isso, suspeito que seja intuitivo, tanto para ativistas quanto para acadêmicos, que todos os animais merecem respeito, e não apenas os sencientes. Por essa razão, continuamos a usar a terminologia enganadora “animais” quando, de fato, não estamos falando da vida animal propriamente dita.
E quanto a Gary Francione? Do ponto de vista teórico, Francione não apresenta absolutamente nada de novo, nada que já não tenha sido dito antes por outros autores. E do ponto de vista prático/estratégico, Francione comete um erro de avaliação grosseiro do processo de sensibilização animalista e da psicologia moral do senso comum. Apesar disso, Fracione conseguiu uma grande visibilidade no Brasil, visibilidade que ele não obteve em outros lugares. Isso é muito curioso. A causa animal no nosso país perde muito com isso, a meu ver.
O debate acadêmico sobre os direitos animais/ética animal nos EUA e na Europa já é corriqueiro, comum há décadas, com muita produção em livros e em artigos publicados em revistas de grande expressão internacional. Ao que o sr. atribui a resistência, e até oposição, da academia brasileira ao tema?
Em primeiro lugar, a academia é uma instituição conservadora por natureza e refratária às temáticas heterodoxas e vanguardistas. Ademais, a academia brasileira está 40 anos atrasada no trato da questão animal, quando comparada, por exemplo, à anglo-saxã. Em terceiro lugar, essa resistência tende a aumentar frente a algumas teses avançadas pelo próprio animalismo. Se você for falar em favor dos animais no auditório do departamento de filosofia da USP e disser que a morte de uma criança é tão grave (moralmente) quanto à morte de um peixe, você provavelmente não será convidado a falar de novo lá. Talvez por não defender teses achatadoras e contraintuitivas como essa, continuo a ser convidado a falar para os meus pares.
A propósito, venho trabalhando com uma concepção segundo a qual, por exemplo, a morte humana é mais grave que a morte de um peixe (e a do peixe é mais grave que a morte de uma borboleta). O problema é que muitos animalistas desavisados suspeitam que a tese de que a vida humana vale mais que a vida de um peixe justificaria, ao fim e ao cabo, a prática da pesca (desportiva) – o que não é absolutamente o caso! Mas, infelizmente, falácias como essa acabam exercendo uma influência da direção da reflexão animalista.
Partindo da ideia de que a maioria dos ativistas dos direitos animais no Brasil não nutre muita simpatia pela fundamentação teórica, voltamos ao seu livro, que é um guia de argumentação filosófica em defesa dos animais, nos vem a seguinte questão: é possível defender os animais sem passar primeiro por um estudo sério de Ética Animal?
Se estamos falando de uma defesa animal maximamente blindada aos ataques especistas, a resposta é não. Por outro lado, o ativismo não tem tempo nem deseja investir muita energia na digestão de teorias pesadas. O problema é que a informação filosófica disponível na rede mundial de computadores pode dar a falsa impressão de que entendemos todas as sutilezas teoréticas de um livro de ética. Aliás, tenho lido algumas afirmações na internet que me causam enormes calafrios filosóficos.
De qualquer maneira, como pesquisador, tenho me dedicado a fornecer munição filosófica à defesa animal. Por essa razão, minha abordagem atual de trabalho não é via teorias acabadas, mas, em vez disso, através de conceitos-chave. Teorias são aceitas ou rejeitadas no seu todo, o que não acontece com a aplicação de certas noções como vulnerabilidade, dignidade, interesses, direitos, etc.