Não devemos ajudar nenhum porco que esteja sofrendo diante de nós, a menos que essa ajuda esteja relacionada à abolição da escravidão dos porcos. Os porcos devem, assim, abrir mão de seus interesses mais vitais e imediatos a bem da causa da abolição. Tampouco devemos melhorar as instalações de criação animal, na medida em que isso retardaria a abolição da pecuária. Aliás, por que não usar gaiolas mais sujas e apertadas a fim de acelerar a libertação das galinhas? Por essa razão, a China, onde a legislação bem-estarista é insignificante, está mais próxima de abolir a escravidão animal do que outros países. Reformas bem-estaristas são mais prejudiciais aos animais do que reforma nenhuma. Apenas os movimentos que lutam pelo fim da exploração são benéficos aos animais. Querer promover o bem-estar dos frangos implica estar concordando implicitamente com o uso deles como comida. É correto aumentar o bem-estar de uma pessoa, mas não devemos tentar aumentar o bem-estar de uma vaca. O presente artigo, apresentado no 12th Vegan Festival International, ataca, na linha de David Sztybel principalmente, esses e outros resultados da argumentação antibem-estarista de Gary Francione.
Por que a escolha deste tema?
Dentro do panorama atual do movimento de defesa animal tem ocorrido um fenômeno muito
singular, a saber, uma polarização entre duas posições, a do chamado Bem-Estar Animal, de um lado, e a do Direitos dos Animais, de outro, também chamado de Abolicionismo Animal. Podemos qualificar essa contraposição: (1º) essa rivalidade está se acirrando, (2º) a controvérsia se faz mais presente na esfera ativista do que na literatura acadêmica, (3º) muito do combustível dessa disputa provém da obra do professor norte-americano de direito Gary Francione e (4º) a conseqüência indesejável dessa rivalidade é a de passar uma mensagem confusa para o público a respeito dos objetivos do movimento animalista. Irei criticar aqui os argumentos antibem-estaristas de Francione, tal como eles aparecem na obra Rain without Thunder1, dentre outros textos de menor fôlego. A escolha por esse autor se deve à seguinte razão: o leitor não familiarizado com o debate internacional atual fica com a impressão de que Francione tem quase o monopólio da reflexão em Ética Animal. Tal impressão decorre do fato de que Francione é o pensador animalista que tem suas idéias mais amplamente ventiladas nos meios de comunicação eletrônica da Internet, traduzidos convenientemente para o idioma português. Por meio deles, Francione tem falado praticamente sozinho. Seus argumentos parecem não receber contra-argumentação e são aceitos quase sem maiores contestações pela comunidade ativista. Minha intenção é mostrar que sua argumentação não transita pacificamente dentro do debate em Ética Animal. Farei isso apresentando, principalmente, um
extrato das críticas avançadas por David Sztybel no artigo Animal Rights Law: Fundamentalism versus Pragmatism2, no qual é defendida a posição chamada de Abolicionismo Pragmático3, além das contribuições de outros pensadores da área, como Steven Wise e Steve Best.
Meu objetivo aqui é apresentar uma posição ética pessoal que suspeito que muitas outras pessoas também compartilham. Irei atacar a tese de que apenas os movimentos que lutam exclusivamente pelo fim da exploração são benéficos aos animais. Irei disparar contra a idéia de que reformas bem-estaristas são mais prejudiciais aos animais que reforma nenhuma. Ou seja, sustentarei que a argumentação de Francione é fortemente questionável, cria um racha desnecessário no movimento de defesa animal, e pode fazer mais mal do que bem para os animais. Antes, porém, gostaria de fazer uma ressalva, aparentemente óbvia, dirigida principalmente àqueles não habituados ao exercício acadêmico: não confundam a crítica sobre algum problema teórico na fundamentação da causa com a crítica à própria causa. Pode parecer o oposto, mas as ponderações que se seguirão não visam desqualificar a causa abolicionista; pelo contrário.
O que diz Francione
Gary Francione é um filósofo do Direito, não um filósofo da Moral. Ele não nos apresenta uma axiologia própria e genuína, mas apenas reúne conceitos de outros pensadores da área. De Peter Singer, ele tomou emprestado o princípio de igual consideração de interesses e a vinculação lógica entre interesses e senciência. E, de Tom Regan, ele tirou o conceito de sujeitode- uma-vida e o princípio moral que proíbe usar uma criatura apenas como meio para o benefício de outra – o chamado Princípio de Respeito de Regan – que, por sua vez, é uma adaptação da segunda fórmula do Imperativo Categórico de Kant.
A principal contribuição positiva de Francione, no entanto, é distinguir, em termos morais e legais, nosso uso de animais, de um lado, do nosso tratamento de animais, de outro. Por conta disso, o movimento de defesa animal está dividido em três posições: (1) A escola do Bem- Estarismo, que aceita o uso humano dos animais na medida em que eles sejam tratados humanitariamente, isto é, que se evite seu sofrimento desnecessário. O foco desta corrente é a regulamentação do tratamento animal; (2) a posição do Direitos dos Animais, ou Abolicionismo Animal, que sustenta que nosso uso de animais não é moralmente justificado e, portanto, deve ser abolido. Entre ambas as posições, temos (3) aquela que Francione denomina de "Novo Bem- Estarismo", que defende a regulamentação a curto-prazo enquanto não se atinge o fim último da libertação animal ou, pelo menos, uma redução significativa da exploração animal no futuro. Francione declara que apenas a segunda posição, a do Direitos, é legítima.4
Em Filosofia Moral, direitos fundamentais protegem aquilo que é inegociável ou inalienável. A tese básica de Francione é bastante clara: todos os seres sencientes têm o direito de não serem usados exclusivamente como meios para os fins de outros. Diferentemente de quaisquer coisas que possuímos, os animais têm o direito básico de não serem item de propriedade de seus donos. Podemos chamar esse direito básico de "proto-direito", isto é, o direito de ter outros direitos. Dito isso, apresento, a seguir, uma sucessão de objeções à posição de Gary Francione.
3. Francione apresenta falsas analogias: abolir o abuso dos animais em graus não é semelhante a abolir o abuso infantil ou a tortura em graus. Propor o consumo eticamente mais consciente de animais não é semelhante a propor o estupro com maior consciência ética
Inspirado por Francione, o discurso abolicionista freqüentemente compara uma ética da suavização do sofrimento animal com uma ética da suavização da pedofilia, estupro e outras violências hediondas. Trata-se, entretanto, de analogias enganadoras no sentido prático, uma vez que a escravidão, estupro e pedofilia já são condenados pela nossa moralidade social e já são considerados legalmente crimes, enquanto que a sociedade e os juízes aceitam o uso e a exploração de animais. Pensar em eliminar a exploração animal gradativamente não é pragmaticamente análogo a consentir no combate à exploração infantil também de forma gradual, pois a exploração de menores já é entendida como moralmente inaceitável nas sociedades contemporâneas. Já há leis contra o abuso infantil e as pessoas já se revoltam em face da violência contra crianças, pelo simples fato de saberem que isso está acontecendo diante delas. Mas expor o confinamento de uma porca-parideira numa gaiola de gestação não gera indignação moral da maioria das pessoas. Uma reportagem sobre alguém que abusou de uma criança já provoca a prisão do autor. Mas uma reportagem sobre a criação de porcos não provoca a interdição da fazenda.
Essa analogia também resvala em outro ponto, quando estabelece uma semelhança entre o uso mais consciente de animais e, por exemplo, o estupro com maior zelo ou escrúpulo por parte do estuprador. Por quê? Porque propor reformas bem-estaristas para melhorar o tratamento dos animais não implica legitimar o uso deles - da mesma maneira que propor leis que impõem penas mais severas ao estuprador, que também espanca sua vítima, não significa reduzir a gravidade moral do crime do estupro (sem espancamento). A retórica de Francione carrega um sofisma aqui.
4. Francione comete o erro de desconsiderar o contexto de um problema moral na comparação entre escravidão humana e escravidão animal Francione pratica também um erro de interpretação contextual de injustiças. Se há um clima social já favorável à abolição da escravidão de uma categoria de vítimas, uma lei bem-estarista irá atrasar o processo abolicionista. Mas se a atmosfera social for desfavorável à abolição, uma norma bem-estarista não irá retardar ou impedir a abolição; ao contrário, irá promovê-la. Voltarei a isso mais adiante, mas, por enquanto, uma referência à escravidão humana no Brasil colonial pode ser esclarecedora.
Podemos admitir que, no final do século XIX, a aprovação de uma lei que regulamentasse a ventilação nas senzalas, obrigando a instalação de janelas, poderia ter retardado a assinatura da Lei Áurea no Brasil. Por quê? Porque já havia uma sensibilidade social pró-libertação dos escravos à época. Mas esse não é o caso da abolição animal: a possibilidade política e jurídica de promulgação de leis que proíbam o uso dos animais hoje, em grande escala, é praticamente nula. De qualquer modo, duvido que Castro Alves, eminente abolicionista, fosse contrário a uma lei que obrigasse a instalação de janelas das senzalas oitocentistas. Tampouco ele mereceria o título de "novo escravagista", apenas por ser a favor de tais janelas.
5. Sob pena de incoerência, Francione deveria ser contrário à legislação bem-estarista voltada aos humanos Se é eticamente correto aumentar o bem-estar de seres humanos, por que seria diferente em se tratando de animais? Tomemos o caso do salário mínimo no Brasil. A imensa maioria dos trabalhadores assalariados comemora quando o valor do salário sobe. Em 2009, o salário mínimo teve um acréscimo de R$50, passando para algo em torno de R$500,00. Seguindo a lógica de Francione, deveríamos ser contra a lei que concedeu esse aumento, pois apenas retardou a aprovação de um salário digno (digamos, de US$ 2000), que atenderia, assim, a todas as necessidades básicas humanas e asseguraria o direito fundamental do trabalhador a um tratamento digno. O mesmo vale para o aumento do seguro-desemprego e para os valores da aposentadoria. Pergunto: já que tais leis podem ser classificadas como "bem-estaristas", elas seriam contrárias aos direitos dos cidadãos? A argumentação de Francione sugere que sim.
Vejamos outro exemplo: uma lei que obriga a instalação de rampas para cadeira de rodas nos
edifícios pode ser chamada, igualmente, de uma lei "bem-estarista". Seguindo o mesmo raciocínio de Francione, tal lei seria ruim para os cadeirantes, na medida em que apenas ameniza o problema da acessibilidade, não alterando a idéia de que cadeirantes são inferiores a outras pessoas, já que, em termos urbanísticos, suas necessidades têm menor valor em relação as dos não-cadeirantes. Os deficientes físicos, afinal, têm direito, não só a rampas nos prédios, mas à igualdade de movimento em todas as calçadas e espaços públicos da sua cidade. Aquela rampa só suavizaria a discriminação contra deficientes físicos, portanto, de acordo com Francione, a lei em questão seria uma má lei em termos morais e deveria ser recusada pelos ativistas que militam a favor dos cadeirantes.
Note que, em suma, podemos acusar Francione de praticar especismo, pois creio que ele aprova o aumento do bem-estar dos seres humanos, como algo bom, justo e correto, mas é contrário ao aumento do bem-estar dos animais. Por outro lado, desempregados, aposentados e deficientes físicos têm o direito pleno de serem protegidos pelo Estado, mas essa proteção, no mundo real da política e da economia, envolve negociação e progride, sim, em graus. Por que isso seria diferente para o caso dos animais?
6. As melhorias bem-estaristas não teriam o efeito sobre o mercado que Francione supõe Francione argumenta que, se as condições de criação animal forem aliviadas ou atenuadas, mais pessoas irão consumir produtos animais, com a sua consciência moral mais leve, aumentando, assim, a exploração, as mortes e os sofrimentos. Há alguns pontos frágeis nessa conjectura:
(i) O efeito das leis bem-estaristas sobre os consumidores não seria exatamente aquele que Francione prevê. As pessoas que já são vegetarianas não vão deixar de ser só porque os animais começarão a ser mais bem tratados nas fazendas e nos matadouros. E as pessoas que já comem animais não vão aumentar seu consumo por causa disso. Os únicos consumidores que seriam influenciados por reformas bem-estaristas são aqueles que já concordam com a exploração, mas são mais sensíveis ao sofrimento animal. As pessoas que já condenam a exploração animal não vão alterar sua opinião com as novas normas de bem-estar. E aquelas pessoas veganas que boicotam os produtos de consumo baseados nos direitos dos animais vão continuar boicotando, mesmo se o bem-estar dos animais aumentar.
(ii) Leis bem-estaristas não irão criar a opção de produtos orgânicos, "animais felizes" ou "freerange" para o consumo das pessoas mais conscientes: esses produtos já estão disponíveis no mercado.
(iii) A repercussão que a mídia daria a medidas bem-estaristas, como, por exemplo, a proibição de gaiolas de bateria, poderia dar maior visibilidade à causa abolicionista, convertendo eventualmente as pessoas ao veganismo, em vez de fazê-las maiores consumidores de produtos animais.
(iv) Novas normas de bem-estar animal fariam aumentar os custos da criação e exploração de animais: os criadores iriam pagar mais aluguel de instalações, criar menos animais no mesmo espaço, pagar mais pela ração, gastar mais com a ventilação dos galpões, etc. Ou seja, todo o custo de ter que explorar animais aumentaria, e o aumento dos preços dos produtos iria desestimular o próprio consumo. De fato, isso já ocorre com a carne oriunda da criação extensiva, que tende a ser mais cara do que a da criação intensiva.
(v) Conforme Francione, o aumento do bem-estar animal faria aumentar o número de animais abatidos. Teríamos, então, um cenário de mais direitos à vida violados, mas mais direitos ao bem-estar atendidos. Num cálculo moral, poderia ser eticamente preferível criar 100 vidas com 50% de sofrimento do que 10 vidas com 100% de sofrimento.
7. Francione e a expressão enganadora "Novo Bem-Estarismo"
Aqui o problema é terminológico. Segundo Francione, um abolicionista que é a favor de leis bem-estaristas a curto-prazo não é realmente um abolicionista, mas, sim, o que ele chama de "novo bem-estarista". O Novo Bem-Estarismo seria, então, aquela posição híbrida formada pelo Bem-Estar Animal agora e pelo Direitos dos Animais assim que for possível. Ora, essa expressão sugere falsamente que não há diferença significativa entre o novo e o velho bemestarismo.
Mas há, e é grande: o chamado Novo Bem-Estarismo adota o ideal da abolição, não se opondo à noção de direitos dos animais. O "Velho" Bem-Estarismo, ao contrário, não abraça o ideal da abolição. Qualquer pessoa que almeja a abolição da escravidão animal é, por definição, um abolicionista, não importa que a estratégia adotada por ele seja eventualmente errada, e merece, portanto, esse nome - e não o sufixo enganador "novo" - a não ser por uma tirada retórica, no pior sentido do termo. Note que essa terminologia falaciosa de Francione promove uma divisão no movimento animalista e uma falta de comunicação entre os ativistas.
8. O principal erro estratégico de Francione: "Como as leis bem-estaristas não causam a abolição, então elas devem ser rejeitadas." Francione diz que regulamentações bem-estaristas já existem há cerca de duzentos anos e, ainda assim, estamos usando mais animais, e de maneira mais horrenda, do que em qualquer outra época da história humana. Em primeiro lugar, o argumento não prova muito empiricamente: estamos também usando mais brócolis e grãos-de-bico do que antes. Exploramos mais animais hoje que outrora devido ao aumento da população humana e ao desenvolvimento tecnológico na pecuária - não em virtude de um aumento da insensibilidade das pessoas quanto ao destino dos animais. De fato, ao observarmos as sociedades contemporâneas, estamos atualmente testemunhando o contrário dessa premissa de Francione.
Em segundo lugar, o que autoriza Francione a decretar que, após esses duzentos anos, acabou o período de testes do Bem-Estarismo e, assim, já está provado que as leis bem-estaristas não funcionam? Isso é curioso, já que a proposta abolicionista, sendo muito mais recente em termos históricos, também não nos garante nenhum resultado a ser atingido. De qualquer modo, nenhum abolicionista pragmático afirma que reformas em prol do bem-estar animal irão, por si só, levar à abolição e ao fim do especismo. Mas, cuidado, não deixe que Francione faça você acompanhá-lo num sofisma: se o aumento do espaço das gaiolas não nos levou até agora à abolição do uso de galinhas, isso não significa que deixar a gaiola apertada irá trazer a liberdade para elas. Em terceiro lugar, portanto, podemos dizer que um erro básico de Francione é considerar a causação moral uma questão de "tudo ou nada". Ou seja, já que as leis bem-estaristas não causam a abolição, então elas fazem mais mal do que bem para os animais.
Para elucidar essa falácia, de acordo com Sztybel, se faz necessário distinguir dois tipos de ações diferentes: "causar algo" e "conduzir a algo". Um estado de coisas, acontecimento ou fato A causa um acontecimento B quando, dada a ocorrência do primeiro, se produz, origina ou determina a ocorrência do segundo. Na causação, se A ocorre, então B também deve ocorrer.
Por outro lado, A conduz a B quando A torna mais provável que B ocorra em conjunção com
outros fatores. Neste caso, A não causa, mas possibilita a ocorrência de B. Voltemos ao nosso ponto. Um abolicionista pragmático não afirma que o Bem-Estarismo é suficiente para causar a abolição da escravidão animal no futuro. Ele está apenas dizendo que as regulamentações bem-estaristas influenciam favoravelmente a causa abolicionista. Leis bemestaristas tendem a conduzir a leis abolicionistas, com maior probabilidade, mas não com garantias de que isso ocorra. Leis bem-estaristas, por si só, não assegurarão a implantação dos direitos dos animais, mas criam condições geralmente favoráveis para isso. Uma lei que proíba a criação industrial de porcos, por exemplo, pode ser interpretada, neste sentido, como uma lei que dá um passo em direção à libertação dos porcos.
A mesma dinâmica também ocorre no domínio da literatura animalista. Um texto bem-estarista não causará automaticamente a compreensão da idéia abolicionista pelo leitor, mas, em conjunção com a inteligência e a sensibilidade moral de quem o lê, freqüentemente conduz à adoção da causa. O livro de Peter Singer, Libertação Animal, é um livro, sabemos, bemestarista, não abolicionista. Singer inclusive defende a vivissecção em determinadas situações.
Mas mesmo não sendo abolicionista, a leitura desse livro inspirou e influenciou milhares de abolicionistas e veganos pelo mundo afora. Isto mostra claramente que proposições bemestaristas podem nos aproximar da posição abolicionista. Em suma, o Bem-Estarismo cria um ambiente favorável na mentalidade das pessoas para que o Abolicionismo possa florescer como idéia moral.
9. O caso da China e da Suécia contrariando a argumentação de Francione
Disse antes que regulamentações bem-estaristas promovem – e não bloqueiam ou atrasam – resultados abolicionistas. Por quê? Porque leis bem-estaristas influenciam favoravelmente a formação de mentalidades e de culturas compassivas, possibilitando trazer a noção de Diretos dos Animais para o interior delas. Com efeito, é difícil de acreditar que a promoção da bondade e da compaixão numa sociedade se torne um obstáculo ao Direitos dos Animais. Muito pelo contrário: em sociedades com altos teores de violência e crueldade, falar da imoralidade de possuir e usar criaturas sencientes irá obter uma adesão praticamente zero entre os ouvintes.
Dois casos diametralmente opostos, China e Suécia, serão suficientes para ilustrar este ponto. É fato de conhecimento público que a condição dos animais na China é deplorável. Lá praticamente não existem leis bem-estaristas. Não é por acaso que haja poucos pensadores abolicionistas, grupos ativistas e consumidores veganos chineses (em termos proporcionais). Por que isso não se trata de mera coincidência? Por que há uma relação causal entre esses dois fatos? Por uma simples razão: em uma cultura cruel não há um potencial democrático favorável ao Direitos dos Animais. Uma sociedade caracterizada pela insensibilidade aos animais não promoverá o Veganismo ou o Abolicionismo. Na China, particularmente, o discurso do Direitos dos Animais deve soar como ridículo para 99,9% da população e, assim, irá produzir poucos ativistas. Lá, propor uma legislação para animais, como sujeito de direitos, provocaria muito mais risos do que aqui no Brasil. A partir disso, fica claro que o rival do Direitos dos Animais não é o Bem-Estar Animal, como sugere Francione. O rival do Abolicionismo não são as leis bemestaristas.
Ao contrário, ambos são aliados na formação de uma cultura nacional de respeito e compaixão com os animais.
Passemos ao exemplo da Suécia. Aquele país já conta com leis banindo a criação de galinhas em baterias de gaiolas e de porcas em celas de gestação. Isso significa que esses animais suecos dispõem de mais espaço para se moverem, um ambiente melhor e menos estresse durante suas vidas. Essas leis suecas foram supostamente aprovadas por razões bemestaristas, e não pela noção moral de direitos. Francione diz que as leis bem-estaristas são inúteis ou fúteis, porque não alteram o status de propriedade dos animais. Mas não é sensato considerar que a proibição da criação intensiva de animais num país inteiro seja um resultado inútil ou insignificante. Se o argumento de Francione estivesse correto, a forte legislação bemestarista sueca faria com que a Suécia estivesse mais distante do ideal abolicionista do que a China, o que é uma hipótese evidentemente absurda. É óbvio que se passa o contrário: é a China que está mais longe de abolir a escravidão animal. Francione afirma que leis bem-estaristas são inúteis, dentre outras razões, porque, na medida em que os animais continuam sendo tratados como propriedades, (1) apenas os interesses dos seus proprietários serão considerados, especialmente o interesse de explorar sua propriedade mais eficientemente, (2) os animais não têm relações legais com seus proprietários ou com outras propriedades, (3) não têm direitos de serem bem-tratados e (4) não terão valor nenhum se perderem seu valor de mercado. Francione, a este respeito, apresenta a analogia da caneta:
Uma caneta não pode ter direitos frente ao seu dono, do mesmo modo que um animal também não pode ter seus interesses ponderados com os interesses de seu proprietário. Podemos retomar o exemplo sueco para problematizar as razões de Francione. Como foi dito, uma legislação bem-estarista sueca aboliu a criação de animais em baterias. Note que as leis que protegeram os animais foram aprovadas apesar dos interesses contrários dos proprietários dos animais criados, que, assim, tiveram seu lucro reduzido. Essa legislação estabeleceu, sim, relações legais entre humanos e animais-propriedade, que resultaram protegidos legalmente. Além disso, a analogia da caneta é enganadora, pois a legislação bem-estarista foi aprovada justamente devido ao reconhecimento de que os animais têm interesses no seu próprio bemestar – ao contrário de canetas, que não têm interesses em nada. Por fim, a idéia de que animais são propriedade, ao contrário do que sugere Francione, não foi suficiente para paralisar a mente dos legisladores suecos que aprovaram leis a favor da liberdade de movimento por parte dos animais.
10. Não é correto pensar que uma "Ética do Bem-Estar" seja rival de uma "Ética dos Direitos": buscar reformas bem-estaristas não significa concordar com o uso de animais Propor medidas bem-estaristas que tratem os animais de forma "humanitária" não implica, de modo algum, que o proponente esteja concordando com o uso de animais. Significa apenas reconhecer que a conjuntura social e política atual não é suficiente para que a abolição do uso dos animais seja instaurada legalmente. Vejamos: uma galinha poedeira em uma gaiola de bateria tem 100% do seu interesse em se movimentar livremente desrespeitado. Uma galinha criada free-range tem, digamos, 80% desse interesse respeitado. Para qualquer galinha real, de carne e osso, 80% de liberdade física é muito melhor que o 0% de uma criação intensiva. Se alguém aprova os 80% de liberdade, isso não significa que ele não deseje os 100%. Se alguém concorda com o uso de anestésico na castração de porquinhos, isso não significa que ele esteja aprovando o uso do porco como comida.
Neste ponto, um leitor de Francione irá objetar que, se alguém não aprova ou não deseja comer carne, não deveria concordar com leis que permitem a ingestão de animais, mesmo que envolva menos crueldade. Aquele que consente com o Bem-Estarismo a curto prazo visando à abolição a longo-prazo é acusado de uma cumplicidade com a injustiça e colaboração com o mal. Ora, podemos rebater isso evocando situações semelhantes. Acredito que Francione não tenha aprovado a política militarista do governo George W. Bush. Mas alguém, então, poderia argumentar que, já que Francione vivia nos EUA e sabia que parte dos seus impostos financiava as operações militares do governo Bush, isso significa que o filósofo dera seu apoio, na forma de uma cumplicidade tácita, à invasão do Iraque. Da mesma forma, parte dos impostos de um vegano brasileiro vai para a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, envolvida diretamente com a exploração de animais para consumo humano. Já fica clara aqui a resposta à acusação de cumplicidade tácita: Francione simplesmente não podia parar o exército americano a curto-prazo, tanto quanto um abolicionista pragmático não pode parar a indústria da carne a curto-prazo. Mas isso não significa estar aprovando ambas as situações. Note que a defesa de um gradualismo pragmático em direção à abolição não significa que as etapas que separam o Bem-Estarismo da Libertação Animal devem ser percorridas obrigatoriamente, lentamente e com muita cautela. Ao contrário, devemos pular qualquer etapa nessa aproximação, assim que isso se mostrar possível.
O perfil da organização PETA5 se presta para representar a posição abolicionista pragmática em termos institucionais. Essa entidade defende leis bem-estaristas, ao mesmo tempo em que advoga o veganismo e proclama, com todas as letras, o ideal moral abolicionista no seu mote: "Os animais não são nossos para comer, para vestir, para fazer experiências, para nos entreter
ou para explorar de qualquer modo que seja". Veja a diferença: a WSPA6, por exemplo, não explicita essa orientação ética abolicionista ou vegetariana; apenas menciona o fim da crueldade e a promoção do bem-estar animal. Mas isso não significa que o mundo seria um lugar melhor para os animais se a WSPA não existisse. De qualquer modo, se o PETA é a favor de uma lei que aumenta o espaço para a criação dos frangos de corte, seria absolutamente leviano interpretar isso como um sinal que o PETA é a favor da escravidão dos frangos ou do uso deles no nosso jantar. Ao dar suporte para essa lei, o PETA apenas está mostrando que algo da sua agenda abolicionista não pode ser realizado por enquanto (a parte do "animais não são nossos para comer") – e não que o PETA carece de uma agenda abolicionista. São aqueles que participam do assassinato de animais que estão aprovando essa matança. São aqueles que se utilizam da escravidão animal que estão dando apoio ao especismo – e não uma entidade de defesa animal como o PETA.
11. Não é o Bem-Estarismo, mas, em vez, é Francione que é complacente com a crueldade
com os animais, ao usá-los apenas como um meio para a abolição Este tópico dá conta de dois tipos de erro de Francione, um estratégico-político e outro ético. Vejamos o primeiro deles. Seria razoável supor três grandes fases pelas quais uma sociedade passa no que diz respeito ao tratamento de animais: (1) de extrema crueldade (como agora), (2) de crueldade substancialmente reduzida (como resultado de uma ampla legislação bemestarista) e (3) do Direitos dos Animais. Francione esquece que as mudanças legais ocorrem num passo conservador. Nesse passo legislativo conservador, das condições muito cruéis de agora, chegaremos provavelmente a uma próxima fase legal de leis menos cruéis, e não a uma fase de direitos de ter direitos. Numa sociedade tão especista quanto a nossa, seria muito ingênuo esperar um "salto de vara" legislativo da crueldade para a Libertação Animal – estaria faltando passar pela fase intermediária do Bem-Estar Animal, como uma transição antes da do Direitos dos Animais. Dito de outro modo, seria ingênuo tentar saltar da pequena minoria que apóia um congresso vegano esperando alcançar a grande maioria que passa ao largo desse congresso, mas que é aquela que vota e faz as leis. Ademais, essa miopia estratégica tem graves conseqüências políticas: é o próprio movimento abolicionista que favorece a permanência de leis cruéis e a tolerância da população com a crueldade, na medida em que tende a não promover campanhas para criação de leis ou, se o fizer, irá propor leis pouco realistas, como, por exemplo, que dêem liberdade absoluta para os animais.
O segundo erro de Francione é de natureza moral. O movimento do Direitos dos Animais, segundo ele, tem como objetivo abolir a exploração institucionalizada dos sencientes. Em linguagem legal, isso significa erradicar o status de propriedade dos não-humanos. Ele diz, no seu livro Rain without Thunder, que um abolicionista não pode sacrificar interesses fundamentais dos animais hoje na esperança de que, amanhã, outros animais deixem de ser propriedade humana.7 Pense, então, numa lei bem-estarista que prescreva gaiolas maiores para frangos. Francione diria que o "Novo Bem-Estarismo" está desrespeitando os outros interesses das aves hoje, almejando a libertação das aves amanhã. Ora, pergunta-se: não é o próprio Francione que está permitindo a miséria animal atual a fim de garantir a abolição no futuro? Não é ele que está propondo tratar os animais de hoje como meio para a causa abolicionista? É correto desconsiderar o atual direito dos frangos em se movimentar na esperança de que outros frangos tenham direitos totais amanhã? Não é o abolicionismo pragmático que trata os animais de hoje como meros meios para fins futuros; é o abolicionismo de Francione que o faz. Se seguirmos Francione, em vez de agirmos para obter mudanças bem-estaristas agora, iremos manter as condições extremamente cruéis da exploração animal. Essa condescendência ou tolerância passiva com o horror da criação animal atual é moralmente bem pior que a suposta tolerância bem-estarista com o status de escravos que os animais detêm hoje. Francione permite que o mal do sofrimento prossiga sem uma mudança efetiva e que continue mais que o necessário. Ao não tentar produzir o que é melhor para os animais a cada momento, a cada estágio do desenvolvimento moral da sociedade, é o abolicionista fundamentalista ou imediatista que se torna cúmplice da miséria que atinge os animais hoje. E, ao apresentar propostas não viáveis legalmente, é ele garante a manutenção do status quo especista.
Esta questão também é interessante do ponto de vista teorético, já que, em Ética Animal, a
concepção do Direitos dos Animais é filosoficamente contrastada com o modelo utilitarista. Os
filósofos do Direitos dos Animais, como Francione e Regan, usualmente criticam o Utilitarismo
por ser a filosofia moral que permite que um indivíduo seja tratado como simples meio para o
bem da maioria. Como foi dito, Francione, sendo contra medidas legais bem-estaristas que
aliviem em parte o sofrimento animal, está propondo indiretamente que a miséria atual dos
animais seja usada como meio para atingir o ideal abolicionista. Ora, se esperaria esse cálculo
de um filósofo utilitarista – e não de um filósofo do Direitos dos Animais, como ele.
Na verdade, esse aspecto da proposta francioniana cheira a totalitarismo. Qualquer ideologia fascista se caracteriza pela ideia de que o bem da comunidade, grupo ou Estado se sobrepõe ao dos indivíduos, exigindo o sacrifício deles em benefício do todo. No caso em questão, Francione advoga o sacrifício de cada animal individual para o bem da causa abolicionista. Nessa perspectiva, cada animal individual é tomado apenas como uma peça de manobra. Se eu mesmo fosse um porco aprisionado numa baia neste exato momento, eu preferiria viver com mais espaço, mais água e mais forragem antes de ser abatido. Pedir ao porco para abrir mão de seus interesses mais vitais a bem da causa da abolição da escravatura dos porcos é apelar para uma lógica "zoo-fascista". E qualquer pessoa que propõe que um animal individual sacrifique seus interesses imediatos para o bem dos animais como um todo pode ser chamado de Stalin do movimento de defesa animal, por esta mesma razão.
12. Não há apenas um, mas dois tipos de Abolicionismo: o Abolicionismo
Fundamentalista e o Abolicionismo Pragmático Embora uma pessoa ou um grupo de pessoas possam adotar uma Ética do Direitos dos Animais, no sentido de ética pessoal, a criação de uma legislação abolicionista não é uma opção a curto-prazo. Não se trata, então, de discutir se devemos ou não optar por uma legislação abolicionista: isso não é nem mesmo uma possibilidade prática atualmente. Note que não se está discutindo aqui o que é melhor para os animais a longo-prazo. Abolicionistas fundamentalistas e abolicionistas pragmáticos concordam nisso. A questão aqui é: o que é realmente melhor para eles a curto-prazo. Abolicionistas fundamentalistas e abolicionistas pragmáticos concordam (a longo-prazo) no que diz respeito ao propósito da abolição animal, mas discordam sobre o que é mais eficaz em termos de legislação (a curto-prazo) para atingir tal fim.
Abolicionistas fundamentalistas e abolicionistas pragmáticos desejam o que é melhor para os
animais. Mas o que é melhor para eles? Há dois modos de compreender isso: o melhor concebível ou imaginável (no plano do ideal) e o melhor realmente possível (no plano do factível ou exeqüível). O que chamamos de melhor tem, portanto, duas dimensões. A idéia abstrata do melhor para um indivíduo envolve uma atemporalidade, ou seja, não é dependente do seu contexto histórico e social. Mas a realização concreta daquilo que é melhor depende, sim, do que é caso num determinado momento histórico especifico. O correto ou o justo nada mais é do que uma baliza, um marco, um princípio regulador último para as várias configurações fácticas da nossa sociedade. O abolicionismo pragmático adota a concepção de justiça abolicionista como ideal regulador. Entretanto, nossa sociedade, real e concreta, ainda não permite a implantação do fim moral da abolição da escravidão animal. De fato, seria ingênuo pensar que o homem deixará de interferir na vida dos animais a curto ou médio prazo. Isso, todavia, não nos deve levar ao ceticismo: a tensão entre o melhor possível aqui e agora (o melhor real) e, do outro lado, o justo e correto (o melhor ideal) é produtiva. Essa dialética gera tensão e diálogo constantes e, desse modo, propicia o progresso moral da nossa sociedade.
Para um abolicionista pragmático, em suma, a abolição é uma meta, um ideal a ser alcançado e um critério para criticar o afastamento de uma determinada sociedade real em relação a uma sociedade justa com os animais. A abolição, neste sentido de idéia reguladora, não precisa ser entendida como uma idéia utópica. Pelo contrário, se espera atingir esse ideal o quanto antes possível. Mas se não for possível hoje, amanhã, na semana seguinte ou no mês que vem, então deixemos as gaiolas maiores, mais limpas e mais confortáveis agora. Preferir deixar as gaiolas mais sujas e menores é negociar com a condição miserável de vida dos animais em cativeiro, e isso é eticamente inadmissível.
A partir do que foi dito, Sztybel sugere o que seria o princípio moral do Abolicionismo Pragmático: "Devemos produzir o que é melhor para os seres sencientes em todos os momentos". Podemos traduzir essa regra por "Devemos fazer o melhor para todos os animais (animais como grupo escravizado) e para cada um deles (como criatura escravizada) tanto a curto-prazo quanto a longo-prazo".
A partir de 2010, será ilegal o uso de baterias de gaiolas para galinhas em toda a União Européia. Um abolicionista fundamentalista diria que essa lei não fornece liberdade às aves, e elas têm direito a isso. Um abolicionista pragmático diria que, se o melhor para as galinhas agora são gaiolas maiores, então é melhor para as próprias galinhas que se acabe com as gaiolas agora. O melhor para elas não é uma gaiola apertada.
13. O alvo da defesa animal deve ser o próprio indivíduo animal: o princípio abstrato chamado "direito" é apenas um meio para isso Abolicionistas correm o risco de pensar o Direito Animal como coisa abstrata e pertinente a animais abstratos – em vez de algo a ser materializado no animal concreto e real, que, neste instante, ocupa alguma gaiola, em algum criadouro, em algum lugar do mundo. Direitos, embora constituam um ideal moral, não são os fins da ação ativista. Direitos são apenas meios. Os animais são fins em si mesmos.
Não há nada de valor na abolição a não ser pelo fato de fazer um bem para os seres libertados. O alvo da ação moral deve ser o próprio indivíduo animal, não algum princípio. A obsessão do ativista por agir pelos direitos dos animais, fazendo da idéia da abolição quase um fetiche, é um outro modo sutil de antropocentrismo conceitual. Em termos estratégicos, isso distrai o ativista do foco pragmático sobre o que realmente é importante. Neste ponto, um abolicionista fundamentalista irá protestar: o melhor para um animal é ter direitos para não ser escravizado pelo especismo. Isso é verdade, em se tratando de uma verdade atemporal. Um abolicionista pragmático irá concordar em fazer valer direitos o mais cedo possível. O erro de Francione é não distinguir o melhor imaginável ou concebível do melhor realmente possível. A abolição não é o melhor que pode ser implementado em favor dos animais a um curto-prazo, simplesmente porque isso não é nem mesmo uma opção neste momento. O melhor para os animais, no nosso mundo do aqui e agora, tampouco é advogar um direito de ter direitos e nada resultar alterado da legislação atual.
14. Francione não leva em conta o direito dos animais ao bem-estar
Em Rain without Thunder, Francione escreve: "o direito básico de não ser tratado como propriedade é um direito que não admite e não pode admitir graus".8 A abordagem pragmática aqui exposta não vai compartilhar com essa lógica do "tudo ou nada", mesmo adotando o vocabulário dos direitos. Para tanto, só é necessário que admitamos que o direito básico de não ser considerado propriedade inclua uma série de direitos subsidiários, tais como o direito de liberdade de movimento. Ora, o status de propriedade dos animais não seria reduzido em um grau se garantíssemos apenas um único interesse animal, por exemplo, por meio de uma lei (bem-estarista) que garantisse o direito deles em se mover livremente? Essa abolição parcial, ou esse direito parcial, faria um mal para os animais criados livremente? Não, faria um bem.
De fato, essa idéia já se encontra no livro Beyond Prejudice, da filósofa norte-americana Everlyn Pluhar9: os animais têm direito ao bem-estar físico e mental. Nessa perspectiva, por que uma lei que proíba a criação industrial de porcos deve ser interpretada como uma lei tipicamente bemestarista?
Por que não podemos interpretar essa lei como aquela que institui o direito dos porcos ao bem-estar e o direito dos porcos ao livre movimento nas fazendas de criação? Afinal, o direito a não ser tratado como propriedade é apenas um dos possíveis direitos que um sujeito pode portar. Uma lei bem-estarista que estipule uma gaiola para galinhas poedeiras com um mínimo de Xm² pode ser interpretada como postulando o direito da galinha a viver num espaço não inferior a Xm². Em outras palavras, não há nada no direito ao bem-estar e no direito a não ser propriedade que os obriguem a serem rivais no sentido lógico, normativo ou legislativo. O status de propriedade que o animal detém não o impede de ter vários direitos, inclusive um direito ao bem-estar. Além do mais, isso teria um alto valor tático e estratégico, na medida em que o bem da propriedade é exatamente aquilo que interessa ao seu proprietário.
15. A noção de direito não é necessária para a defesa animal
Algumas pessoas, especialmente aquelas que não têm formação filosófica ou as que estão se iniciando agora neste debate, esquecem que a defesa animal e a Ética Animal não precisam necessariamente apelar para o discurso do Direito dos Animais, tampouco para a terminologia que a ciência jurídica adota. Aliás, a retórica ou o discurso dos direitos, tal como o conhecemos, é uma invenção moderna, uma invenção do século XVIII. Trata-se, pois, de algo muito recente da história do pensamento moral e uma criação essencialmente humanista. Pergunta-se: não era possível defender os animais antes do século XVIII por não existir ainda a linguagem dos direitos? É claro que era.
Outro erro muito comum entre os ativistas é tentar procurar (e encontrar) o conceito de direitos, como se usa hoje, antes da época moderna, por exemplo, na filosofia de Pitágoras e nas religiões orientais antigas. Já foram articuladas defesas dos animais bem consistentes através dos conceitos de compaixão ativa (da ética budista), de ahimsa ou não-violência (da ética jainista) e de anticrueldade (da ética pitagórica). Tais conceitos, evidentemente, servem de inspiração para o discurso contemporâneo de defesa animal, mas seria um grande equívoco buscar a idéia de Direito dos Animais em um texto anterior ao Iluminismo. De qualquer modo,
uma significativa parte dos grandes pensadores que defenderam os animais ao longo da história humana o fez sem utilizar o conceito de direitos, e nem por isso apresentaram defesas fracas, incompletas ou inarticuladas; muito pelo contrário.
De outra parte, por que supor que apenas leis que contenham a noção de direitos podem levar a uma ampla regulamentação abolicionista? A sociedade, convencida do Bem-Estar Animal, pode, sim, criar leis abolicionistas. Tudo que é necessário para um sociedade abolicionista é um apoio democrático para isso, ou seja, que seus representantes criem tais leis. Qualquer mudança legal depende apenas de uma motivação pública – e, infelizmente, o povo em massa não está lendo, nem parece que pretende ler, Gary Francione ou Tom Regan. De fato, é muito mais provável que essa motivação pública pró-abolicionista possa ser alcançada por meio do cultivo de uma cultura compassiva ou um sentimento de amor pelos animais, veiculada por um sistema global de educacional humanitária. Não é por acaso que os encontros abolicionistas e congressos veganos freqüentemente lançam mão de filmes com imagens de atrocidades, apelando exatamente para a compaixão humana. Isso parece ser mais eficiente do que palestras de teoria ética. Lembremos que a abolição do uso de animais em circos nos seis estados e nos cinqüenta municípios brasileiros ocorreu por razões bemestaristas, devido à crueldade envolvida, e não por apelo ao direito dos animais em não serem instrumentos para a diversão humana. Somente quando alcançarmos um consenso públicocontra o especismo, do qual ainda estamos muito longe, aí, sim, será a hora apropriada para falar do direito do animal de não ser propriedade humana.
16. As críticas do professor de Direito Animal Steven Wise às idéias de Gary Francione Steven Wise, no artigo Thunder without Rain: a review/commentary of Gary L. Francione's Rain without Thunder10, critica a posição de Francione em vários pontos, dentre esses, destaco os seguintes:
(i) Foi dito antes que Francione apenas copiou e reuniu conceitos morais que já estavam em
Peter Singer e Tom Regan. E quanto à sua contribuição legal? Wise comenta: "Francione não apresenta quase nenhum argumento sobre direitos legais para fundamentar a mudança que ele propõe na classificação legal [dos animais] de coisas para pessoas. Em vez disso, ele assume que seus argumentos a favor dos direitos morais dos animais não-humanos se aplicam também aos seus direitos legais. Mas, como o filósofo americano Tom Regan observou, os argumentos contra e a favor da personalidade moral e da personalidade legal dos animais não-humanos podem ser irrelevantes uns para os outros".11 Além disso, Francione não explica quais espécies de animais deveriam receber esses direitos e quais direitos legais eles deveriam receber. Wise lembra que os juízes decidirão mudar o status legal de coisas que os animais possuem hoje somente quando forem persuadidos por argumentos legais. Mas até agora os juízes americanos não têm sido influenciados nem pela obra de Peter Singer nem pela de Tom Regan. Numa pesquisa na jurisprudência americana feita em 1997, Wise constatou que nenhum juiz citou nem Regan nem Singer em alguma de suas sentenças.
(ii) Wise se refere também a um problema que eu mesmo já tratei pormenorizadamente em outro artigo 12 . Esse problema atinge também outros eticistas animalistas. Tanto Regan quanto Francione falam de direitos dos animais quando, de fato, não é de todos os animais que eles estão falando. Ambos defendem direitos morais e legais apenas para uma parcela mínima do Reino Animalia. Se Francione adotar o conceito de "sujeito-de-uma-vida" de Regan, estaremos falando de mamíferos, aqueles que supostamente têm desejos, percepções, memória, sentido de futuro e identidade psicológica ao longo do tempo. Isso limitaria direitos morais e legais a apenas 0,3% de todos os animais do planeta. Mas se Francione estiver pensando em seres sencientes, então ele está propondo direitos morais e legais para apenas 2% dos animais do mundo, que são justamente os vertebrados. Por fim, se Francione estiver pensando que a senciência é importante como um meio para permanecer vivo, como ele afirma, então ele deveria atribuir direitos morais e legais a qualquer ser vivo, e não apenas aos animais, já que, em última instância, estaríamos tratando do valor da vida, em vez do valor da senciência. Wise observa que propor direitos legais para todos os animais, como a Biologia os define, seria uma dificuldade enorme, para não dizer uma impossibilidade jurídica. Mas se a Ética Animal deve atribuir direitos tanto a chipanzés quanto a mosquitos, é provável que a nenhum animal seja atribuído direitos legais nos nossos tribunais.
(iii) A maioria das pessoas engajadas na causa animal não são filósofas ou advogadas para lidar
logicamente tão bem com um conceito sofisticado como o de direitos. De fato, a noção de direitos a ter direitos, ou de ter um direito a não ser propriedade de outrem, é muita mais complicada para o entendimento da média da população do que a idéia de que o sofrimento animal é um mal. Ademais, o conceito de direitos já está bastante desgastado no discurso público sobre direitos humanos. Não é surpreendente que haja uma grande confusão dentro do movimento animalista quanto à qualificação dos direitos dos animais. Segundo Wise, Francione apenas tem ajudado a aumentar tal confusão.
(iv) Não se pode atribuir direitos legais aos animais que ainda não existem. Os únicos potenciais portadores de direitos legais a serem considerados por nós são aqueles que estão vivos neste momento. Portanto, é irrelevante se reformas legais bem-estaristas irão reforçar, ou não, o status de propriedade dos animais no futuro ou se beneficiarão os exploradores dos animais no futuro. Wise pergunta: "Quem melhor respeita os direitos morais das vacas que vivem e que têm sede hoje, o Novo Bem-Estarismo ou Francione? Quem está mais disposto a sacrificar os atuais interesses das vacas que vivem e que têm sede hoje na esperança de que os direitos legais de outros animais não-humanos sejam reconhecidos em algum momento no futuro, Francione ou os Novos Bem-Estaristas?" 13 Francione, incoerentemente, não aplica seu próprio princípio moral: ele descuida dos portadores de direitos de hoje pensando nos portadores de direitos de amanhã.
(v) Wise também lembra que a maioria de nós carece de visão, conhecimento e experiência para entender como nossas decisões de hoje afetarão o destino dos animais no próximo ano, na próxima década ou no próximo século. Não há estudo, experiência ou talento que garanta a alguém a capacidade de identificar qual a estratégia necessária para implementar um programa de reforma legal de longo prazo. Nem reconhecer uma tática ou estratégia vencedora ao vermos uma. Além disso, estamos agindo em nome de outros que não podem se comunicar conosco e nos informar sobre os seus interesses. Wise acredita que o Bem-Estarismo de hoje pode pavimentar o caminho para a abolição de amanhã, mas também pode enfraquecer essa base.
Reformas bem-estaristas podem ou não aumentar o poder dos exploradores. Podem ou não prolongar a prática da pecuária. É claro que o Bem-Estarismo, como Francione observa, ratifica o status de propriedade dos animais. Wise concorda que esse é um problema estrutural dessa corrente. Mas isso não significa que o Bem-Estarismo seja estruturalmente defeituoso, como Francione pensa, porque confirmar tal status não é o único resultado positivo alcançado pelas reformas bem-estaristas.
(vi) Wise, todavia, não afirma que Francione está errado em termos estratégicos. Pode ser que a abolição da pecuária ocorra mais rapidamente se os animais de criação sofrerem mais. A questão é: devemos buscar uma legislação que aumente o sofrimento dos animais a fim de acelerar a data da abolição animal? É claro que não. Segundo Wise, é um absurdo caracterizar uma legislação bem-estarista como uma violação dos direitos dos animais: "Imagine que eu esteja escravizado e, como conseqüência disso, sofra privações terríveis, incluindo fome e sede.
Suponha também que Novos Bem-Estaristas Humanitários tentem introduzir uma legislação que obrigue que eu receba comida e água adequadas. Eu objetaria isso com base em que essa legislação viola meus direitos? Eu rezaria por essa mudança!".14
(vii) Os abolicionistas imediatistas ou fundamentalistas acreditam que não se deve negociar com a injustiça e com o mal. Mas, conforme Wise, se quisermos nos tornar a força principal na luta pela abolição do status de coisa dos animais, nós seremos obrigados a nos envolver ou nos comprometer com o mal – especialmente os advogados. Diz ele: "Até que um sistema injusto seja alterado, nós, advogados, devemos trabalhar dentro dele ou, então, não trabalhar".15
17. As críticas do filósofo da Ação Direta Steve Best às idéias de Gary Francione A posição de Francione não é apenas criticada pelo seu colega do Direito, mas também pela corrente da Ação Direta. Steve Best é considerado um porta-voz filosófico não-oficial do já famoso Animal Liberation Front. Aliás, em virtude de suas declarações de apoio às ações realizadas em nome dessa organização, sua presença foi banida do Reino Unido. Steve Best observa que Francione propõe justamente aquilo que critica no Bem-Estarismo, a saber, uma cumplicidade com o próprio sistema que está combatendo. Em outras palavras, Francione quer eliminar a injustiça contra os animais, mas sem alterar o sistema legislativo, sistema este que é marcadamente especista no seu essencial. Francione, a despeito do aspecto revolucionário do seu pensamento, ainda se move dentro dessa rede política e socialmente dominante, contra a qual a filosofia da Ação Direta dedica suas forças. No ponto de vista de Best, segundo uma entrevista concedida à revista Vegan Voice, Gary Francione exagera na sua abordagem:
"Não é de modo algum errado ou uma traição ao abolicionismo procurar um alívio imediato ao sofrimento dos animais de fazenda ou de laboratório, especialmente quando esse sofrimento é tão terrível e a abolição é uma possibilidade tão distante. O problema não são as reformas em si mesmas, mas, sim, reformas separadas do objetivo mais amplo da abolição. (...) O PETA, por exemplo, travou uma longa campanha contra as cadeias de fast-food para forçá-las a pressionar seus fornecedores a melhorar as condições dos animais de fazenda. Essa é uma medida reformista. Mas, veja bem, eles também vão à raiz do problema ao promover o veganismo e a educação humanitária, e eles avançam enfaticamente a mensagem abolicionista de que "os animais não são nossos para comer, vestir, experimentar ou nos divertir". Portanto, eu penso que a crítica de Francione ao PETA erra o alvo e que algumas vezes ele constrói uma falsa dicotomia entre reforma e abolição, ou não vê o quão fina essa linha divisória pode ser.
Considere o sucesso da campanha de 2002 para banir as gaiolas de gestação de porcas na Flórida: de um lado, foi um esforço abolicionista para acabar com uma prática especifica, o uso de gaiolas de gestação; por outro, entretanto, foi reformista, já que não contestou a criação industrial de animais como um todo."16
Best também discorreu sobre o abate humanitário bem-estarista. Ele observa que, sendo uma educação vegana e outros projetos educacionais processos demorados, e que a cada ano mais, e não menos, animais são mortos para comida, então, "se deveria ser favorável ao abate humanitário como um objetivo imediato e de curto-prazo. A situação é tão horrível que alguma coisa precisa ser feita agora mesmo, e não daqui a um ano, uma década ou um século". Veja que quem está dizendo isso não é nenhum partidário acomodado do bem-estarismo: essas palavras são de um abolicionista militante da Ação Direta, defensor do ALF, a ponto de ser considerada uma pessoa perigosa pelo governo inglês.
18. Considerações finais
O risco da proposta abolicionista dentro de uma sociedade fortemente especista como a nossa é o de, exigindo a erradicação total do uso dos animais, não obtermos nem mesmo o que é o melhor possível para eles, neste momento, em termos legais. Reclamando a abolição completa, podemos nem mesmo obter a proibição legal no que tange a dor e ao sofrimento mais brutais. Freqüentemente pedindo o máximo, conseguimos menos que o mínimo. Se o que foi dito antes é correto, então o projeto de Francione pode, paradoxalmente, tornar as coisas piores para os animais.
Permanece também o risco de uma organização ativista adotar a concepção de Francione como um mantra e, hipnotizada por ela, ficar fora do jogo político, investindo a maior parte da sua energia em sabotar qualquer lei de redução do mal-estar animal. Francione parece se dedicar mais ao isolamento e à alienação daqueles que tentam melhorar o destino dos animais do que trabalhar de modo cooperativo visando objetivos comuns. Em vez de confrontar os opressores especistas, ele ataca seus supostos aliados, como Peter Singer e Tom Regan, que, como ele, dedicam todo seu esforço intelectual em prol dos animais. Singer e Regan podem ter visões diferentes a respeito de aonde chegar e como chegar, mas, sem dúvida, eles estão do mesmo lado da luta contra a indiferença. Francione, em vez de trabalhar solidariamente pelo progresso moral da sociedade, investe mais energia na sugestão de que bem-estaristas não são melhores que aquelas pessoas que escravizam os animais.
Se a maioria da sociedade e dos legisladores ainda não reconhece nem mesmo uma Ética do Bem-Estar, o que se dirá, então, do direito de um animal de não usado por nós. A mensagem de Francione faria sentido se uma grande parcela da sociedade já desejasse fazer o melhor para os animais, o que, infelizmente, não é o caso. A imensa maioria da nossa população, algo talvez em torno de 98% dela, ainda come animais. Uma sociedade, estando tão longe assim de ver a gravidade da morte e do sofrimento animal, está a anos-luz de atribuir a galinhas poedeiras o direito de não serem tratadas como propriedade humana nas granjas. Está a anos-luz de conceder uma personalidade legal aos porcos nos chiqueiros. Essa parcela da população egocêntrica não está nem mesmo pronta para Peter Singer - e está muito menos pronta ainda para Gary Francione.
O que Francione está propondo é certo, mas no momento errado da história. É claro que pensadores a frente do seu tempo têm um papel vital em qualquer movimento ativista. Os visionários apresentam alvos a serem atingidos. O problema com o projeto de Francione não é o ideal moral que ele nos convida a perseguir. Seu problema é o de estratégia. O de como chegar lá. O sonho da abolição não deve cegar nossos olhos quanto ao que é o melhor (ou o menos pior) para os animais neste instante da nossa civilização.
Todos nós, animalistas, queremos a mesma coisa: acelerar a erradicação da opressão; maximizar a libertação total dos sencientes. Mas não parece correto olhar para os bilhões de animais em estado de miséria deplorável neste momento e pensar que, antes de fazer alguma coisa, deveremos perguntar: "Que bem minha ajuda a vocês fará para a causa abolicionista?". Não parece correto esquecer as vítimas do martírio animal atual, abandonando-as à sua própria sorte, a menos que tenhamos certeza que nossa ajuda promoverá a abolição.