Os animais possuem uma longa relação com o homem, advinda dos tempos pré-históricos. A relação dos humanos com os caninos, por exemplo, tem origem numa relação pré-histórica de co-dependência. Os lobos se aproximavam dos homens visando se aproveitar das carcaças e das vísceras dos alimentos desperdiçados; por outro lado, protegiam as cavernas daqueles que os alimentaram, prevenindo as ameaças noturnas.
Daquela época aos dias atuais, essas relações foram evoluindo junto com a racionalidade do homem, criando uma situação ambígua: à medida que o homem se civiliza e se reproduz, cresce a demanda da participação dos outros animais na cadeia econômica, ao passo em que os homens preocupados com a ética e a sobrevivência na terra estudam modos de frear esse aproveitamento desregrado dos seres vivos do planeta.
O animal como servo do homem
Já nos tempos antigos era levantada a questão dos direitos animais. No século VI a.C. Pitágoras já falava sobre o tema, ao fazer considerações sobre o que ele entendia por ser a transmigração de almas, defendendo o respeito aos animais. Já seu sucessor Aristóteles argumentava que os animais não estavam na mesma escala natural do homem; alegando que os animais seriam irracionais, o filósofo os colocava como meros instrumentos para a busca da satisfação do homem. Essa disparidade entre os pensamentos dos dois filósofos gregos mostra, portanto, que as ideias relacionadas ao direito animal não seguem uma lógica linear, variando entre o tempo e a subjetividade.
Os pesquisadores da contemporaneidade buscam incessantemente entender como o homem se relacionava com os animais nos tempos antigos. A ideia do uso dos animais por humanos – para comida, vestimenta, entretenimento e objeto de pesquisa – é moralmente aceitável principalmente em razão de duas fontes. Primeiro, a ideia de uma hierarquia divina baseada no conceito teológico de “domínio”, vindo da citação de Gênesis (1:20–28), onde Deus disse a Adão: “Frutificai, e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.” Embora o conceito de domínio não implique em direito de propriedade, este vem sendo interpretado ao longo dos séculos como tal.
Também há a ideia de que os animais são inferiores por conta da sua falta de racionalidade e linguagem, portanto merecem menos ou até nenhuma consideração dos humanos. Partindo da idéia de que os animais não possuem uma identidade moral definida, sob esse ponto de vista, um porco é simplesmente um porco, e sobre sua classe o homem exerce sua “responsabilidade”.
Durante séculos, o conceito de direito animal era completamente ignorado pelos intelectuais, permanecendo, por negligência, a concepção bíblica de serventia, até que em 1641 surgiu uma reflexão, que embora retrógrada, foi significante para o início das ideias sobre direitos animais. A grande influência daquele século foi o filósofo René Descartes, principalmente em razão de sua obra “meditações, onde muitas ideias sobre os animais refletem sobre o pensamento de muitos até hoje.
Escrevendo durante a revolução científica – na qual ele figurava como um dos líderes – Descartes propôs uma teoria mecanicista do universo, que propunha que o mundo poderia ser entendido sem se partir, necessariamente, de uma observação subjetiva. Seu ponto de vista mecanicista foi estendido à questão da consciência animal. Mente, para Descartes, era algo separado do universo físico, uma substância à parte, que ligava seres humanos à consciência de Deus. O não-humano, por outro lado, não seria nada mais que um autômato complexo, desprovido de alma, mente ou razão. Segundo o filósofo francês, eles poderiam enxergar, escutar e tocar, mas não eram conscientes, portanto incapazes de sofrer ou mesmo sentir dor.
A evolução da consciência humana e da legislação de proteção animal
Apesar da questão do direito animal ter origem dos tempos mais remotos, reais atitudes tomadas sobre o tema demoraram em se consolidar na civilização moderna. RYDER (2000) afirma que a primeira legislação contra a crueldade animal em língua contemporânea conhecida, foi aprovada na Irlanda, em 1635. Ela proibia arrancar os pelos das ovelhas e amarrar arados nos rabos dos cavalos, se referindo como “a crueldade usada contra as bestas”.
Em 1641, ano em que as “meditações” de Descartes foram publicadas, foi aprovado na Colônia da Baía de Massachusetts o primeiro código legal que protegia os animais domésticos na América. A constituição da colônia era baseada no texto legal “The Body of Liberties”, compilado pelo clérigo puritano Nathaniel Ward. Um dos artigos do código dizia “Nenhum homem exercerá qualquer tirania ou crueldade contra qualquer criatura bruta que seja mantida para o uso humano.”
Os puritanos também aprovaram leis de proteção animal na Inglaterra. Durante a República Puritana, em 1654 foram proibidas as brigas de galo, de cachorros e as touradas. Oliver Cromwell, o governador, não gostava desse tipo de práticas, pois estas se relacionavam com a vadiagem, o alcoolismo e a violência, atitudes mal vistas pelos puritanos.
Após a Restauração, quando Charles II retornou ao trono em 1660, as touradas voltaram a ser legais por 162 anos, até serem proibidas novamente em 1822.
Jean Jacques Rousseau argumentou em seu “Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade Entre Homens” (1754) que os animais devem fazer parte da lei natural; não porque eles são racionais, mas porque são seres senscientes.
“Por esse meio, terminam também as antigas disputas sobre a participação dos animais na lei natural; porque é claro que, desprovidos de luz e de liberdade, não podem reconhecer essa lei; mas, unidos de algum modo à nossa natureza pela sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que devem também participar do direito natural e que o homem está obrigado, para com eles a certa espécie de deveres. Parece, com efeito, que, se sou obrigado a não fazer nenhum mal a meu semelhante, é menos porque ele é um ser racional do que porque é um ser sensível, qualidade que, sendo comum ao animal e ao homem, deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro.”
Já Voltaire, ironiza de forma enfática o posicionamento de Descartes sobre os animais. Em sua obra “Dictionnaire Philosophique”, publicada em 1764, o filósofo argumenta:
“Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os animais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam! Será porque falo que julgas que tenho sentimento, memória, idéias? Pois bem, calo-me. Vês-me entrar em casa aflito, procurar um papel com inquietude, abrir a escrivaninha, onde me lembra tê-lo guardado, encontrá-lo, lê-lo com alegria. Percebes que experimentei os sentimentos de aflição e prazer, que tenho memória e conhecimento. Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias. Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrarem-te suas veias mesentéricas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimentos de que te gabas. Responde-me maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os órgãos do sentimento sem objetivo algum? Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição.”
Anos mais tarde, um dos fundadores do utilitarismo moderno, o inglês Jeremy Bentham, alegava que a capacidade de sofrer que deveria ser a referência de como deveríamos tratar outros seres, não a capacidade de raciocinar, como defendiam alguns de seus contemporâneos. Se racionalidade era o critério, vários humanos, incluindo os bebês e pessoas deficientes, também deveriam ser tratadas como se fossem coisas.
Apesar dos esforços racionais de Bentham e Montesquieu em defender a tese de que os animais são possuidores de direitos, essas ideias ainda eram consideradas ridículas até o fim do século XVIII.
O século XIX viu um acentuado crescimento no interesse da proteção animal, principalmente na Inglaterra. Os estudiosos passaram cada vez mais a se preocupar com os direitos dos idosos, dos Necessitados, das crianças e dos portadores de deficiência mental. Essas preocupações, então, foram estendidas aos animais. Essa época também foi marcada pela criação de sociedades que visavam à proteção dos animais, como a “Society for the Prevention of Cruelty to Animals – SPCA”, criada por membros do parlamento inglês.
Foi no início do século XIX que se viu o primeiro interesse direto na ideia que considerava os não-humanos como detentores de direitos naturais, ou mesmo legais. Lewis Gompertz, um dos homens que participaram da primeira SPCA (Society for the Prevention of Cruelty to Animals), publicou “Moral Inquiries on the Situation of Man and of Brutes”, onde ele defendia que toda criatura viva, humana ou não-humana, tem mais direito de usar seu próprio corpo do que qualquer outro ser, e é nosso dever promover felicidade e igualdade a todos os seres.
Em 1879, Edward Nicholson disse em “Rights of an animal” que animais possuem o mesmo direito natural à vida e liberdade que os humanos, contestando fortemente a visão mecanicista de Descartes, ou o que ele chamou de “cobra Neo-Cartesiana”
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O desenvolvimento na Inglaterra do conceito de direitos animais foi fortemente apoiado por Schopenhauer. Ele acreditava que àquela época os europeus estavam acordando mais e mais para o senso de que os animais possuem direitos, na proporção em que cai a antiga noção de que o reino animal veio unicamente para o benefício e o prazer do homem. Em sua obra “Sobre o fundamento da moral”, ele afirmava:
“A motivação moral por mim estabelecida confirma-se, além disso, como genuína pelo fato de que ela toma sob a sua proteção também os animais, que são tão irresponsavelmente mal cuidados nos outros sistemas morais europeus. A suposta ausência de direito dos animais, a ilusão de que nossas ações em relação a eles sejam sem significação moral, que não há qualquer direito em relação aos animais, é diretamente uma crueza e uma barbárie revoltantes do Ocidente, cuja fonte está no judaísmo. Na filosofia, ela repousa sobre a total diferença, admitida a despeito de toda evidência, entre o homem e o animal, que foi, como se sabe, expressa o mais decidida e vivamente por Cartesius (Descartes) como uma conseqüência necessária dos seus erros. Como, aliás, a filosofia cartesiano leibniz-wolfiana construiu a psicologia racional a partir de conceitos abstratos e construiu uma “anima rationalis” imortal, opôs, então, evidentemente, aos reclamos naturais do mundo animal este privilégio exclusivo e esta patente de imortalidade da espécie humana, e a natureza protestou silenciosamente, como em todas as ocasiões semelhantes”.
Já no século XX, com a chegada ao poder em janeiro de 1933, o partido nazista aprovou uma série de leis de proteção animal na Alemanha. Foi considerada a primeira tentativa governamental de quebrar a barreira das espécies, excluindo a visão que se resumia à pura distinção entre humanos e animais. O homem perdeu sua posição sacrossanta, passando a vigorar uma nova hierarquia entre os seres vivos. Os arianos estavam no topo, seguidos por lobos, águias e porcos. Os judeus amargavam a mesma posição dos ratos.
Meses mais tarde, a “Tierschutzgesetz”, ou lei de proteção animal, foi aprovada com hitler declarando: “Im neuen Reich darf es keine Tierquälerei mehr geben.”, ou seja, “No novo Reich, nenhuma crueldade contra os animais será permitida”. Curioso notar que vários líderes nazistas eram adeptos de algumas formas de vegetarianismo, incluindo Adolf Hitler e Joseph Goebbels. Alguns oficiais do exército alemão, inclusive, eram recomendados a também banir a carne de sua alimentação.
O complexo legal de proteção ambiental alemão também trazia leis que proibiam a caça, regulamentavam o transporte de animais em veículos automotores e restringiam a vivissecção, pois eram consideradas como “ciência judaica”. Mais tarde, após ser alertado sobre o prejuízo na estratégia de defesa do Reich, Hitler ordenou a revisão da legislação que tratava sobre as pesquisas com animais, alegando que “é lei em toda comunidade que, quando necessário, indivíduos singulares são sacrificados pelo interesse de todos”.
Após a Segunda Guerra Mundial, a demanda por produtos de origem animal cresceu assustadoramente, principalmente em razão do aceleramento da produção, que visava fomentar o consumo e alimentar os países abalados devido ao pós-guerra. Junto à explosão populacional no século XX, ocorreu uma mudança nos hábitos alimentares da população mundial, aumentando exponencialmente o consumo de carne pelos seres humanos. Para acompanhar essa necessidade, ocorreu uma transformação no modo de produção da carne, passando do sistema tradicional de pequenas fazendas ao industrial, onde bilhões de animais são mortos todo ano. Também em virtude dessa mudança, a busca constante por inovações tecnológicas fez crescer a utilização de animais em pesquisas nas mais variadas áreas.
Na década de 60, um pequeno grupo de intelectuais da Universidade de Oxford, conhecido como o “Grupo Oxford”, começou a entender o crescimento do uso de animais como uma exploração inaceitável. Em 1964, Ruth Harrison publicou a obra “Animal Machines”, uma crítica ao às “fazendas industriais”. O psicólogo Richard Ryder, que se tornou membro do grupo, ficou perturbado com alguns incidentes como pesquisador que ele testemunhou em laboratórios animais no Rieno Unido e nos Estados Unidos, o que ele chamou de “erupção espontânea de pensamento e indignação”.
Em 1970, Ryder cunhou o termo “especismo” para descrever os interesses de seres com base na sua condição de membros de determinada espécie. Essa palavra criou um abrangente conceito dentro dos estudos sobre os direitos animais, sendo usada por vários doutrinadores, anos mais tarde se tornando um verbete no Dicionário Oxford da Língua Inglesa.
Em 1975, um psicólogo australiano chamado Peter Singer, que já era engajado na luta a favor dos direitos animais, almoçava com um colega vegetariano, quando começou a entender que comendo animais ele estaria colaborando com a opressão de sua espécie contra as outras. Logo Singer foi apresentado a Roslind Godlovitch, que logo passaram a se encontrar constantemente, revendo e ampliando suas idéias a respeito do direito animal. Com a revisão do livro de Godlovitch, Singer lançou seu livro “Animal Liberation”, influenciando toda uma geração, tornando-se a “bíblia” do movimento moderno de direitos animais.
Do lançamento do livro de Singer até a atualidade, houve um significativo crescimento na área de direitos animais, tanto por parte dos governos, quanto por parte da população mundial. Diversas pessoas ao redor do globo aderiram ao vegetarianismo por convicção e vários países já têm aprovado leis que tratam sobre o tema. Apesar dessa área ainda necessitar de muitos avanços, tendo em vista ser um tema novo, cria boas expectativas para as próximas décadas.
João Ismael Tomaz Mendes Acadêmico de Direito da Faculdade Piauiense – FAP