Nos dias atuais, avolumam-se as discussões acerca da natureza jurídica dos animais, prevalecendo, majoritariamente, três posições: a tradicional, que os manteria na condição de meras coisas; a da personificação, que pretende atribuir aos animais o status de pessoas, sujeitos, portanto, de direitos e deveres na ordem jurídica; e, finalmente, a que sugere a instituição de um terceiro gênero, o dos animais, apartado das categorias das pessoas e das coisas e merecedor de regime jurídico próprio. O Código Civil brasileiro optou pela adoção da primeira, mantendo-se a concepção já prevalecente no diploma civil hoje revogado, editado em 1916. Há, contudo, que empreender raciocínio no sentido de conferir especial resguardo dos animais, o que desafia uma possível redesignação da sua natureza jurídica, a ensejar, enfim, a sua mais ampla tutela, sem que sejam desvirtuados os institutos e conceitos técnicos jurídicos que preenchem o ordenamento brasileiro.
Introdução
Um dos mais emblemáticos embates jurídicos dos tempos atuais se refere à identificação da natureza jurídica dos animais. A questão, diga-se, passa longe de ser despicienda, na medida em que a sua solução desta problemática permite destinar corretamente aos animais o regime jurídico que lhes é próprio.
A palavra animal deriva do latim anima, que significa sensibilidade e movimento, no sentido de fôlego vital. O Reino Animal (Reino Metazoa ou Animalia) é composto por seres vivos multicelulares, heterotróficos (buscam seu alimento no meio onde vivem), geralmente dotados de locomoção e capacidade de responder ao ambiente1. O homem (Homo sapiens) é classificado como pertencente ao Reino Animalia. Entretanto, coloquialmente, utiliza-se o termo "animal" para se referir a todos os animais diferentes dos humanos.
Muitas vezes, a proteção do ambiente é vista como justificável e necessária somente para a defesa dos interesses ou direitos das pessoas naturais. Todavia, esta situação vem sendo questionada. A personificação do animal e a defesa de seus “direitos” são alegadas por vários filósofos e juristas3 como sendo a única forma de garantir uma tutela efetiva destes seres. Para atingir tal intento, contudo, seria realmente necessário atribuir personalidade jurídica aos animais? Mais, o que justificaria esta atribuição somente aos animais, dentre todos os outros seres vivos existentes? Os defensores dos animais, que se distinguem entre correntes mais ou menos radicais, pretendem protegê-los da exploração indiscriminada pelos humanos. Enquanto alguns se empenham em causas específicas contra o sofrimento dos animais, como nas touradas, circos ou no seu uso pela comunidade científica, outros pretendem atribuir-lhes
personalidade jurídica, noção aparentemente incompatível, do ponto de vista técnico-jurídico, com a ideia de que eles podem ser apropriados pelos humanos5 ou usados para fins econômicos ou recreativos.
O australiano Peter Singer, na ótica do que se convencionou chamar “antiespecismo6”, defende o reconhecimento da igual consideração dos interesses dos animais, equiparando a discriminação animal às segregações racistas. Conforme Singer, o movimento denominado “libertação animal” exigirá um altruísmo maior do que qualquer outro, já que os animais não podem exigir a própria libertação. Por serem conscientes, os humanos têm o dever de respeitar todas as formas de vida e tomar providências para evitar o sofrimento de outros seres vivos.
2. A descaracterização dos animais como coisas: tendência legislativa?
A discussão acerca da natureza jurídica dos animais se justifica ao observarmos a tendência legislativa de descaracterizá-los como coisas sem, entretanto, atribuir-lhes personalidade jurídica9. Esta técnica, contudo, dá margem a outros questionamentos. Será que a vida do animal é tão insignificante e submissa à vontade humana que se justifica a classificação dos mesmos como meras coisas? Seria a natureza jurídica do animal algo intermediário entre as pessoas e as coisas? Seria o animal uma “incógnita jurídica” passível de tutela?
A afirmação de que os animais não são mais coisas parece provocadora. Entretanto, uma evolução legislativa parece iniciar-se neste sentido. Em primeiro lugar, editou-se pela UNESCO, em 27 de Janeiro de 1978, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, em sessão realizada em Bruxelas (Bélgica). Embora seja controverso afirmar que animais têm direitos – o que implica a discussão sobre sua possível personificação, a ser desenvolvida adiante –, o texto, de âmbito internacional, embora não possua valor normativo e cogente, cuidou de estabelecer premissas para a tutela daqueles seres, vedando o seu extermínio e a sua submissão a maus tratos ou a atos cruéis. Apesar de composta por disposições notáveis, como as previsões que determinam que “se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia” (art. 3º/2) e que “o abandono de um animal é um ato cruel e degradante” (art. 6º/2), há no texto normas de difícil concretização, como a que estipula que toda a privação de liberdade, mesmo que tenha fins educativos, é contrária ao direito, supostamente conferido a todo animal, de viver livre no seu próprio ambiente natural (art. 4º/2).
No âmbito do Direito Civil, a Áustria foi pioneira ao aprovar, em 1988, a Lei Federal sobre o estatuto jurídico do animal. O §285 do Código Civil austríaco adotou um conceito amplo de coisa, que abrange tanto os objetos corpóreos quanto os incorpóreos. No âmbito daquela lei, foi introduzido o §285a, a prever que os animais não são coisas e estão protegidos por leis especiais. As normas relativas às coisas, entretanto, são aplicáveis a eles, na medida em que não existam disposições divergentes. Com esta reforma, foram introduzidas alterações no conceito de coisas e no regime das obrigações de indenização. Por seu turno, o §1332a do Código Civil austríaco (ABGB) prescreve que, no caso de um animal ser ferido, são reembolsáveis as despesas efetivas com o seu tratamento, mesmo que estas excedam o valor do próprio animal.
Na Alemanha, em 1990, introduziu-se no Código Civil (BGB) o §90a, a determinar que os animais não são coisas e estão protegidos por leis especiais, se lhes aplicando as disposições acerca das coisas de forma análoga sempre e quando não estiver estabelecido de outro modo. Adiante, o §903 do BGB dispõe que o proprietário de um animal, no exercício de seus poderes, tem que observar os preceitos especiais de sua proteção. Em matéria de indenização, foi estabelecido um regime similar ao austríaco e mais favorável ao animal, pois é obrigatório indenizar as despesas feitas em tratamentos veterinários, mesmo que estas excedam consideravelmente o valor daquele (§251 do BGB). Já em sede de processo executivo, o §765a do ZPO (Código de Processo Civil) prescreve que no caso de medida judicial que afete um animal, o tribunal de execução tem que respeitar a responsabilidade do homem por ele. Por fim, previu-se que os animais criados na esfera doméstica e que não tenham fins lucrativos não podem ser objeto da penhora (§811c do ZPO). Alterado em 01 de abril de 2003, o art. 641a do Código Civil suíço dispõe que os animais não são coisas, mas prevê que as disposições relativas a estas são igualmente aplicáveis àqueles, salvo preceitos em contrário. Em complemento, o Código das Obrigações suíço dispõe que o dono ou seus familiares têm direito a uma indenização pelo valor de afeição no caso de ferimento ou morte do animal de companhia (art. 43, nº 1 bis). No direito das sucessões, caso um animal seja beneficiário duma disposição mortis causa, esta deixa é considerada como ônus de cuidar do animal (art. 482/4 do Código Civil). No caso dos litígios em divórcio ou da partilha da herança deve-se considerar qual das partes pode garantir uma melhor acomodação e tratamento do animal (art. 651a do Código Civil). No mesmo país, por fim, foi estabelecida a impenhorabilidade dos animais de companhia10.
No Brasil, cuidou-se de estabelecer a tutela dos animais no plano constitucional, embora a legislação ordinária não tenha operado alterações quanto à sua natureza jurídica, como se verá oportunamente. Com o objetivo de promover o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, prevê o art. 225, §1º, VII da Constituição da República que o Poder Público tem a incumbência de “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco a sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
Assim, assume o animal um estatuto distinto daquele conferido às coisas, o que não provoca, necessariamente, o reconhecimento de sua personificação – afinal, se os animais forem considerados sujeitos de direitos, não poderão ser ao mesmo tempo objetos de direito, pelo que devem ficar impedidos os negócios jurídicos a eles respeitantes.
Ademais, outras situações incompatíveis com o estatuto jurídico próprio das pessoas surgiriam, como a dificuldade – quiçá mesmo a impossibilidade – de se deferir aos animais diversos dos direitos mais elementares inerentes aos seres humanos, em especial os direitos fundamentais e da personalidade. Como justificar que aos animais se reconheça o direito à vida e à integridade física, se deles costumeiramente se alimentam os humanos, ou se servem eles para fins de investigação científica? Como defender a liberdade dos animais aprisionados, do mais ordinário pássaro cativo aos animais de grande porte enjaulados em zoológicos? A propósito, seria possível tutelar os direitos à imagem e à privacidade destes últimos, posto que animais gozam do direito à honra, em seu sentido subjetivo-psicológico, se eles não têm consciência de si mesmos e dos seus supostos direitos?
Se, por um lado, é incongruente afirmar que os animais são titulares de direitos – sejam eles extrapatrimoniais, como os direitos fundamentais e da personalidade, sejam os de caráter patrimonial, já que não se concebe como eles poderiam celebrar negócios jurídicos e amealhar, administrar ou partilhar bens –, por outro lado, é ainda mais pitoresca a hipótese de imaginá-los dotados de obrigações na ordem civil. Mais ainda, noutras searas do Direito, como o Penal, seria absurdo propor que animais pudessem ser sujeitos ativos ou passivos de crimes. Se os animais se tornassem pessoas, entes com capacidade de assumir direitos e contrair obrigações, em tese deveriam responder por seus atos que eventualmente causassem dano a outrem, o que dispensaria a aplicação do art. 936 do Código Civil brasileiro, que imputa ao proprietário do animal (o verdadeiro sujeito de direitos) a responsabilidade objetiva pelos danos causados por este. Já no pólo passivo dos ilícitos penais, seria homicídio matar um animal, ainda que para fins de consumo, já que, ao se tornar pessoa, este deixaria de ser “algo” para se tornar “alguém”, tipificando-se, assim, o delito previsto pelo art. 121 do Código Penal brasileiro? Configuraria crime de omissão de socorro, com notáveis requintes de crueldade, deixar de salvar a vida de uma mosca pousada na sopa, à beira da morte por afogamento? Afinal, apesar de o exemplo tangenciar o ridículo, não se pode deixar de afirmar que, na hipótese, deixa-se de prestar assistência a uma pessoa em grave e iminente perigo de vida, fato que corresponde ao tipo penal em apreço.
3. A polêmica questão da atribuição da personalidade jurídica aos animais
Diversas perguntas foram formuladas com o propósito de identificar a dificuldade de se atribuir personalidade jurídica aos animais. Naturalmente, os adeptos da concessão de direitos aos animais justificariam suas respostas sempre por meio de subterfúgios. Para explicar a impossibilidade de atribuir obrigações aos animais, dir-se-ia que eles podem ser equiparados à condição de incapazes; a escusa para a inaplicabilidade das disposições penais (e tributárias, trabalhistas, comerciais, previdenciárias e de tantos ramos jurídicos quantos se possa imaginar) aos animais se apoiaria ora na constatação da sua inimputabilidade, ora na singela explicativa de que todos esses deveres são incompatíveis com a essência própria dos animais.
Pois é precisamente a incompatibilidade verificada entre o regime jurídico próprio das pessoas – que, mesmo quando incapazes, podem titularizar inúmeros direitos, de cunho patrimonial e extra patrimonial
– e a condição própria dos animais que impede sua caracterização como pessoas. Os seres humanos, ao contrário dos animais, são dotados de intelectualidade e espiritualidade. Os humanos governam seus destinos, são livres e têm a consciência de sê-lo. Estas características impedem, biológica e juridicamente, que se dê a equiparação pretendida.
Juridicamente, soaria incoerente atribuir personalidade aos animais para, na sequência, esvaziar esta mesma personalidade e proclamar que, afinal, animais são pessoas, embora não gozem dos direitos e deveres conferidos ou impostos a estas. Tal personalidade, se reconhecida, nada mais representaria que um rótulo desprovido de conteúdo.
Tecnicamente, atribui-se personalidade a determinados entes para permitir que eles atuem no mundo jurídico como sujeitos de direitos, o que implica, por outra via, que serão eles também obrigados ao cumprimento dos deveres que a lei a todos impõe. Basta ilustrar a ideia pela análise da essência das pessoas jurídicas. Elas recebem da lei personalidade para que possam atuar no mundo jurídico, assumindo direitos próprios, distintos dos direitos dos seus membros ou sócios, e também contraindo obrigações autônomas, pelas quais respondem, em regra, com seu próprio patrimônio. Tais entes gozam de personalidade porque convém aos seres humanos – pessoas naturais, na dicção do Código Civil brasileiro de 2002 – que assim seja, já que as pessoas jurídicas, manejadas pelas naturais, servem aos seus interesses. O mesmo não se pode dizer dos animais, que, se inequivocamente merecem ampla proteção, posto que são seres vivos, não podem merecer a personificação, o que não contribuiria, por si só, sequer para ampliar sua tutela, que continuará a depender da elaboração de leis específicas e da atuação de órgãos protetivos.
Nem se diga, ainda, que também as pessoas jurídicas não são capazes de titularizar os mesmos direitos reconhecidos às pessoas naturais e que, portanto, aí estaria uma eventual abertura para a concessão de personalidade aos animais. Em primeiro lugar, cabe insistir, as pessoas jurídicas são geridas por pessoas naturais, inclusive as fundações, que se formam por um complexo patrimonial personificado. A personificação destes entes serve, essencialmente, para promover os direitos e interesses dos seres humanos, sobretudo aqueles que seriam irrealizáveis individualmente. A eventual concessão de personalidade aos animais jamais produziria os mesmos efeitos.
Ademais, as pessoas jurídicas podem titularizar inúmeras relações de caráter patrimonial, sendo autorizadas a contratar em nome próprio. Aos animais, semelhante prerrogativa soaria inadmissível. E mesmo quanto aos direitos extrapatrimoniais, há uma técnica que justifica a sua incidência sobre as pessoas jurídicas. Veja-se, a propósito, o teor do art. 52 do Código Civil brasileiro em vigor, que determina serem aplicáveis às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade. É por isso que cabe afirmar que as pessoas jurídicas recebem, por analogia, alguns dos direitos da personalidade compatíveis com sua existência, como os direitos ao nome (comercial e transmissível, no caso das pessoas jurídicas), à privacidade (relativamente à inviolabilidade dos seus dados sigilosos) e à honra, em sentido objetivo, já tendo o Superior Tribunal de Justiça reconhecido, inclusive pela edição da Súmula n. 227, que as pessoas jurídicas podem sofrer dano moral, em virtude das eventuais afrontas à sua reputação e respeitabilidade social. Como já se afirmou algures, nem mesmo esses direitos são compatíveis com a condição própria e natural dos animais, o que impede a atribuição de personalidade em seu favor. Em nome da boa técnica jurídica, dizer que animais são pessoas e proclamar que eles não titularizam direitos nem assumem deveres soaria tão absurdo quanto
qualificar as pessoas naturais como coisas e manter intacta sua condição de sujeitos de direitos.
Há que se tutelar de forma efetiva os animais sem cair na famigerada e inadequada tentação de personalizá-los. Se considerarmos as diferenças entre os animais, a personalidade não poderia ser concedida da mesma maneira a todos eles. Parece difícil admiti-la, pois, com efeitos tão limitados a certas espécies. Não há como valorar juridicamente seres vivos em função de sua complexibilidade biológica, pois preceitos que não consideram o interesse de todos os animais também configurariam uma hipótese de discriminação. Com isso, o mesmo “especismo” apontado pelos defensores dos supostos direitos dos animais se repetiria entre eles, uma vez que proclamaríamos uma nova classificação jurídica, a discernir entre os animais personalizados e os animais despersonalizados. A extrema dificuldade para encontrar critérios
biológicos e jurídicos precisos para enquadrar os animais numa ou noutra categoria revela a incongruência da ideia.
A “promoção” dos animais à categoria de pessoas não é necessária para que seus defensores atinjam o objetivo visado, qual seja: a sua efetiva tutela. Tal medida seria inócua. Excetuando-se a proteção da vida e da integridade física, que pode ocorrer independentemente da atribuição de personalidade aos animais, não há, repita-se, que se falar em direitos ao nome, à imagem13, à honra, à privacidade, à intimidade do animal, direitos estes incompatíveis com a sua essência. Não há como lhes conferir estes e outros direitos, tão pouco lhes atribuir obrigações. Ontologicamente, o animal não permite a atribuição de personalidade.
Em termos radicais, a personificação preservaria o corpo do animal de todas as infrações que não podem ser infligidas aos seres humanos, obrigando a generalização do vegetarianismo, por exemplo. Dotar os animais de personalidade seria um biocentrismo exagerado e desnecessário. Parece-nos possível desenvolver outra lógica de proteção dos animais, afastando-se a da sua pretensa personificação.
4. A natureza jurídica dos animais nos termos do Código Civil brasileiro de 2002
No Direito Civil, costuma-se ministrar, entre as primeiras e mais elementares lições, a distinção entre as pessoas, sujeitos de direito, e as coisas e os bens, objetos de direito. Respeitando-se a tradicional dicotomia, o Código Civil brasileiro em vigor (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002), em sua Parte Geral, não por acaso, estabelece de imediato o regime jurídico das pessoas e dos bens. Assim é que o Livro I, composto pelos arts. 1º a 78, cuida das pessoas naturais e jurídicas, seguindo-se o Livro II, que propõe, entre os arts. 79 a 103, as principais classificações quanto aos bens.
Ao estatuir o regime jurídico das pessoas, prevaleceu a mesma concepção adotada pelo Código Civil de 1916: sujeitos de direito são, na dicção da lei, apenas os seres humanos, isto é, as pessoas naturais (outrora denominadas pessoas físicas) e as pessoas jurídicas, sejam elas de direito público ou de direito privado. Já ao cuidar das classificações dos bens, assim prevê o art. 82 do Código Civil: “são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômicosocial”. Não há, no texto do diploma civil em vigor, nenhuma referência específica à natureza jurídica dos animais. Silente o legislador a respeito, cumpre constatar que continuam eles ostentando, na qualidade de semoventes, a condição de bens móveis. Os animais são, para fins legais, os tais bens suscetíveis de movimento próprio a que alude o art. 82 do Código Civil, sendo passíveis, em regra, de figurar como objetos de negócios jurídicos.
Não se avançou, portanto, quanto à disciplina jurídica dos animais já estabelecida pela primeira codificação civil vigente no Brasil. Não cabe dizer que a omissão legislativa relativamente a disposições legais especificamente cunhadas para os animais representa mero esquecimento, a demandar interpretação extensiva em prol da personificação ou de uma eventual inserção dos animais num suposto terceiro gênero, encontrado no intermédio entre as pessoas e as coisas.
O legislador brasileiro tinha ao seu dispor os exemplos contidos nas leis de outros países, já referidos, que consagraram aos animais uma condição jurídica própria. Se não os levou em conta, é porque deliberadamente pretendeu manter, quanto aos animais, a tradicional natureza de meras coisas. No ordenamento jurídico brasileiro, uma mudança de perspectiva nesta matéria supõe, essencialmente, a realização de reforma legislativa específica. Até que ela sobrevenha, mantêm-se os animais, no âmbito do Direito Civil, como espécies de bens móveis.
5. Por uma redesignação da natureza jurídica dos animais
Parte da doutrina criticou as reformas dos Códigos Civis suíço, alemão e austríaco, afirmando que elas em nada melhoraram a situação jurídica dos animais. Tais reformas legislativas seriam, ao revés, meramente simbólicas e desprovidas de conteúdo jurídico real. Entretanto, a mudança, deixados de lado os arroubos de exagero e analisada do ponto de vista teleológico, pode ser encarada como uma evolução do Direito, que passou a considerar o animal como uma criatura, um ser vivo que deve ser protegido mais do que uma simples coisa. Há muito o estatuto do “animal coisa” é fonte de dificuldades para os Tribunais, cujas decisões refletem uma “não adaptação” à natureza específica do animal: certas decisões fazem estrita aplicação das regras do Código Civil sobre coisas móveis e outras têm em consideração a natureza de ser vivo do animal.
Às dificuldades inerentes à diversificação das espécies juntam-se as que advêm da maneira como o animal é percebido segundo as funções que ocupa na sociedade. Às vezes, o animal representa uma fonte de lucro tão grande que se torna cômodo e viável reduzi-lo ao seu aspecto de produto utilitário, o que por vezes causa o esquecimento de sua natureza de ser dotado de sensibilidade. Não raro, a proteção animal fica relegada a segundo plano, sobretudo quando se trata de preservar interesses humanos estritamente econômicos. O caráter apropriável do animal, contudo, não implica fatalmente a sua manutenção na categoria das coisas. A proteção do animal resulta de sua vida, que também é digna de tutela e respeito. A qualificação do animal como coisa defronta-se, assim, com três obstáculos essenciais. O primeiro deles seria a aparente contradição entre a proteção da sensibilidade do animal e o direito de propriedade: tutelado por si só, o animal é protegido, eventualmente, até de atos praticados por seu proprietário. Jamais se imaginou que o direito de propriedade seria limitado a favor da própria coisa. O animal protegido contra maus tratamentos praticados por seu dono, por exemplo, faz com que seja juridicamente difícil continuar a defini-lo como coisa, do mesmo modo como seria incongruente apresentá-lo como sujeito ao direito de propriedade. Há uma aparente incompatibilidade entre o direito de propriedade e a limitação no interesse da própria coisa.
Traçando-se um paralelo com a limitação do direito de propriedade em razão da sua função socioambiental, observa-se que aí o objetivo não é a proteção de um interesse da própria coisa, mas sua proteção em benefício de um interesse da comunidade. A aptidão do animal em sentir prazer e sofrer, para alguns, pode conferir-lhe interesses intrínsecos e, neste caso, a limitação da propriedade resultaria do próprio interesse do animal em preservar sua vida e integridade física17. Isso fica mais evidente no caso do animal abandonado ou dos animais selvagens, em favor dos quais o legislador também estendeu o manto protetor, pois seria incongruente que a legislação os excluísse: mesmo não sendo propriedade exclusiva de ninguém, ainda assim não se pode maltratá-los, porque sofrem. E essa proibição não resulta de uma possível agressão à moral pública (uma vez que os maus tratos podem ocorrer às escondidas), tão pouco por se tratar de agressão à propriedade alheia (uma vez que estes animais não são propriedade exclusiva de ninguém). Esta proteção resulta, conjuntamente, da dimensão difusa do animal enquanto componente do meio ambiente, ou seja, enquanto bem
ambiental necessário à vida humana, e da dimensão individual do animal (tutelado em si e por si mesmo).
Enquanto componente do ambiente e necessário para manutenção do equilíbrio e da vida do planeta19, o animal possui também uma dimensão imaterial para o homem. Há uma dependência simbiótica entre humanos e animais. O que cumpre estabelecer é que tanto quanto há normas de conduta referentes ao tratamento a ser dado aos animais, as quais se justificam em função de direitos das pessoas (sejam estes individuais ou difusos), há também regras que só se fundamentam em face de certas prerrogativas atribuídas ao próprio animal. Neste caso, não parece que a proibição do tratamento cruel exista somente em prol de um meio ambiente equilibrado.
O segundo obstáculo da classificação dos animais como coisas seria o reconhecimento normativo de condições de vida ditadas por imperativos biológicos decorrentes da capacidade de sofrer: não existe nenhuma outra coisa pela qual as pessoas tenham obrigação legal de assegurar a existência digna, evitando o sofrimento desnecessário. Acentua se a necessidade de considerar os animais por si só merecedores de tutela, independentemente da capacidade de satisfazer as exigências humanas. O último deles seria uma concepção moderna do animal pelo Direito, que incluiria novos parâmetros, antes ignorados: a valia não apenas comercial e econômica do animal, mas também o valor afetivo. Por ser vivo e demonstrar emoções, o animal possuiria um valor intrínseco.
As alterações realizadas nos Códigos Civis austríaco, alemão e suíço evidenciam uma tendência pela qual, a fim de melhor proteger o animal, seria conveniente sua não permanência na categoria das coisas. Os animais não são humanos, mas também não são insensíveis. Deixaram de ser coisas, mas, paradoxalmente, lhes foi estendido o estatuto jurídico próprio das coisas. Parece-nos que ao desqualificar o animal como coisa para depois lhes estender o regime jurídico das coisas não é bastante para assegurar sua efetiva proteção. Se a ideia de coisa for moldada sob a acepção de objetos inanimados, ficaria distorcida se aplicada aos animais. Neste caso, admitir-se-ia uma quebra da dualidade pessoa/coisa hoje existente.
A quebra desta dualidade classificaria os animais como um terceiro gênero, que permitiria reconhecer as suas particularidades em relação às outras coisas e recordar o dever de respeitá-los, sem dotá-los de personalidade jurídica. Disposições no seguinte sentido poderiam ser incluídas no Código Civil24 vigente:
“Os animais, seres sensíveis, não são coisas”.
“Os animais não devem ser submetidos a maus tratos e atos de crueldade”.
“Qualquer forma de utilização dos animais deve ser acompanhada por medidas de prevenção dos sofrimentos que lhes possam ser infligidos”.
“O detentor do animal tem o direito de utilizá-lo e dele dispor, mas respeitando sua qualidade de ser sensível, assegurando seu bem-estar e colocando-o em condições compatíveis com os imperativos biológicos de sua espécie”.
“A propriedade dos animais é limitada pelas disposições legais específicas sobre eles”. “A fauna selvagem será tutelada em lei específica e a propriedade dos animais que a
compõem será limitada pelas disposições legais que lhes são próprias”.
Esta mudança de paradigma traria uma maior conscientização da condição de ser vivo do animal, uma vez que o regime jurídico das coisas, no que couber, ser-lhes-ia extensivo. Mesmo não classificados como coisas, seriam objetos de relações jurídicas. Outra solução parece-nos viável: não seria necessário alterar a natureza jurídica dos animais para assegurar sua efetiva tutela, podendo as normas especiais de proteção existir mesmo que a natureza jurídica de coisa permanecesse.
Deve haver uma mudança da concepção do significado de “coisa”. O animal, por ser vivo e capaz de sofrer, é protegido por si. Admite-se a existência de alguns interesses, além dos estritamente humanos, considerando-se a dimensão viva e imaterial dos animais. O Direito deve evoluir sem perder a consciência da interdependência entre as espécies, abandonando-se a ideia de coisa como sendo algo totalmente submetido à vontade humana. Poderia ser entendido como direito dos animais o conjunto de regras jurídicas destinadas à sua tutela. Sendo o animal objeto de transações, poderia, sem se negar sua natureza, deixá-lo figurar no direito das coisas, mas com a criação de uma nova categoria específica: sua classificação comportaria as coisas móveis, as imóveis e as sensíveis (os animais).
O legislador deve tender, neste especial, à realização de um justo compromisso entre as necessidades legítimas do homem e a imperiosa proteção do animal. Deve-se restringir com mais severidade qualquer ato gratuito de crueldade contra o animal; quando o ato cruel for indispensável (para fins de abate, criação, profilaxia ou estudos científicos), é necessário utilizar-se dos meios menos prejudiciais possíveis. A vida do animal deve ser vista como valor autônomo2. É inegável que o futuro da humanidade depende da convivência entre espécies. A solidariedade interespecífica deve ser reforçada e, por isso, é de se esperar que regimes jurídicos próprios dispensem uma efetiva e cabal tutela dos animais, o que depende não apenas da edição de leis, mas também e principalmente da efetiva atuação do Poder Público, a quem competirá fiscalizar e punir eventuais atos ilícitos praticados contra os animais.
6. Considerações finais
Ao cabo de todo o exposto, resta concluir que, embora o debate sobre a condição jurídica dos animais desperte polêmicas que ainda dependem de ampla discussão, é possível, desde logo, firmar balizas para que se alcance a solução mais adequada.
Sob o argumento de que o denominado especismo que confere apenas aos seres humanos o status de pessoas não se justifica, vem-se defendendo a concessão de personalidade jurídica aos animais, que passariam a ser pessoas e, logo, sujeitos de direito. A posição, no entanto, é ilógica, uma vez que o estatuto jurídico próprio das pessoas, que titularizam direitos (de cunho patrimonial e extrapatrimonial) e contraem deveres, é incompatível com a essência dos animais.
Apesar de inegavalmente merecerem o amparo legal contra tratamentos cruéis, não podem os animais assumir os referidos direitos e deveres, uma vez que são objetos (e não sujeitos) de direitos como, por exemplo, a propriedade. Reconhecer aos animais a condição de pessoas para deixar de lhes aplicar o regime jurídico inerente às pessoas representaria resposta atécnica e superficial. De nada adianta a constantemente sugerida mudança no rótulo se, quanto ao conteúdo, os animais continuarem sendo submetidos às regras jurídicas próprias das coisas, não das pessoas.
Não obstante diversos ordenamentos tenham criado um terceiro gênero à parte das coisas e pessoas, nele incluindo os animais, o Código Civil brasileiro de 2002 manteve intacta a solução empregada pelo diploma de 1916, ao qualificar os animais, ditos semoventes, como simples coisas ou bens móveis, posto que passíveis de movimento próprio.
A sugestão que se apresenta, na esteira dos exemplos oriundos de ordenamentos estrangeiros, é a de se criar um terceiro gênero, o dos animais, apartado das categorias das pessoas e coisas. Esta solução tem o triplo mérito de, a um só tempo, reconhecer que animais não são simples coisas, conferir a eles um regime jurídico próprio e, finalmente, escapar da vã tentativa de conceder-lhes personalidade jurídica. Desta maneira, a ciência jurídica prestará notável contributo para a preservação e tutela dos animais, em respeito à sua própria existência, e não apenas aos interesses dos seus proprietários, o que, afinal, se amolda à acepção e aos princípios do Estado de Direito Socioambiental.
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