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Crueldade consentida – Crítica à razão antropocêntrica

INTRODUÇÃO

Apesar de a Constituição Federal brasileira ser contrária à violência para com os animais, preconizando a ampla proteção da fauna, o que ocorre na prática é justamente o contrário. Nosso sistema jurídico, permissivo de condutas cruéis, admite, aceita e muitas vezes até estimula as atrocidades cometidas pela espécie que se diz racional e inteligente. Basta abrir os olhos para a miséria das ruas ou para a perversa realidade rural, na qual animais são maltratados e explorados até o limite de suas forças. Basta ver o que acontece sob o véu dos espetáculos públicos, nas fazendas, nas arenas, nas jaulas e nos picadeiros. Basta olhar o drama dos animais submetidos às agruras da criação industrial, aos horrores dos matadouros e às terríveis experiências científicas, dentre outras situações em que se lhes impinge dor e sofrimento.

Cegos da razão e da sensibilidade, vivemos em um mundo repleto de insensatez. O ciclo da existência humana tantas vezes se limita à satisfação de vaidades pessoais, ambições econômicas e prazeres frívolos. Nesse espaço, não há lugar para a compaixão. Sob o prisma antropocêntrico, a natureza e os animais deixam de ser um valor em si, transformando-se em meros recursos ambientais. Tal sistema, ao desconsiderar a singularidade de cada criatura e o caráter sagrado da vida, justifica a tutela da fauna conforme a serventia que os animais possa ter. Tratados, via de regra, como mercadoria, matéria-prima ou produto de consumo, os animais – do ponto de vista jurídico – têm negada sua natural condição de seres sensíveis. Isso precisa mudar.

Não pode mais prevalecer o silêncio diante de tamanha opressão. Há séculos que o homem, seja em função de seus interesses financeiros, comerciais, lúdicos ou gastronômicos, seja por egoísmo ou sadismo, compraz-se em perseguir, prender, torturar e matar as outras espécies. O mostra que a nossa relação com os animais tem sido marcada pela ganância, pelo fanatismo, pela superstição, pela ignorância e, pior ainda, pela total indiferença perante o destino das criaturas subjugadas. Para que se possa mudar esse triste estado de coisas, há que se incluir os animais na esfera das preocupações morais humanas, porque eles – ao contrário do que se pensa - também são sujeitos de direito. A questão não é apenas jurídica, mas, sobretudo, filosófica. Faz-se urgente, pois, uma revisão do nosso tradicional modelo de ensino, buscando uma fórmula que nos permita respeitar a vida independentemente de onde ela se manifeste. Este caminho, sem dúvida, passa longe do antropocentrismo.

1. JUSTIÇA DOS HOMENS

Denomina-se antropocentrismo o sistema filosófico que pôs o homem no centro do universo, concepção essa que nos atribuiu – em nome da supremacia da razão – o poder de dominar a natureza e os animais. O termo, originário do grego (homem) e do latim (centrum), relaciona-se à ideia religiosa da essência divina do ser humano. Vale lembrar que a escolástica e a teologia medievais firmaram a postura antropocêntrica com base no preceito bíblico de que a terra é o centro do mundo criado por Deus para usufruto do homem. Ao se curvar inicialmente perante os deuses do Olimpo e depois aos santos das Escrituras, assumindo ser “a medida de todas as coisas” – conforme a célebre fórmula de Protágoras – a espécie humana passou a subjugar as demais criaturas vivas. Para o filósofo grego Aristóteles (384- 322 a.C.), cujos ensinamentos foram acolhidos e repassados por São Tomás de Aquino (354-430), a pirâmide natural da existência tem em sua base os vegetais, que existem para servir aos animais, enquanto estes, finalmente, servem ao homem. Trata-se do círculo vicioso da dominação, que deferiu à espécie tida como racional – especialmente no Ocidente - um poder ilimitado sobre tudo que a cerca. É certo que a domesticação dos animais e seu uso pelo homem remonta a tempos longínquos. Nas sociedades primitivas a marca desse domínio ficou registrada nos desenhos rupestres simbolizando a caça de bisões, mamutes e renas, sendo que os mais remotos vestígios de sedentariedade humana coincidem com a sujeição de cães, carneiros, bodes, bois, porcos, cavalos, iaques, camelos e alguns tipos de aves. Séculos mais tarde, os filósofos da Escola de Atenas e a tradição judaico-cristã sacramentaram essa posição de superioridade humana em relação ao mundo natural. Finda a Idade Média, a era das grandes navegações e das conquistas territoriais permitiu aos países colonialistas consolidar não apenas a sanha de dominação sobre os povos vencidos, mas a matança indiscriminada de animais nativos visando a propósitos mercantis ou à satisfação da vaidade do caçador, simbolizada pelo cruel aprisionamento e subjugação dos bichos.

Desde muito tempo que o cão, lobo domesticado, tornou-se o mais fiel companheiro do homem, enquanto que o gato carregaria em si o estigma das superstições medievais. Já o hábito da caça, inicialmente praticado como necessidade de sobrevivência e depois elegido em esporte da nobreza, difundiu-se pelas classes sociais a ponto de se firmar como um dos mais pusilânimes entretenimentos humanos. Os costumes da cultura popular, como a secular tourada espanhola e alguns rituais de sacrifícios nas festividades religiosas, transformaram martírio em tradição. Nossa indiferença em relação à dor dos animais também contaminou a mentalidade científica. Imerso no paradigma mecanicista de Renê Descartes (1596-1650), que no século 17 propôs a famigerada teoria “animal máquina”, o fisiologista Claude Bernard (1813-1978)) fez da vivissecção o método oficial de pesquisa médica. A partir deste momento a experimentação animal torna-se metodologia padrão, submetendo suas cobaias a tormentos inomináveis sob a cômoda justificativa de contribuir ao progresso da ciência. Com o advento da Revolução Industrial e os sistemas de produção em série, o capitalismo emergente agrava ainda mais a situação dos animais. Após a Segunda Guerra Mundial, o avanço da industrialização e as novas descobertas tecnológicas romperam de vez com o sistema tradicional de criação. O antigo modelo pastoril cedeu vez à perversa metodologia utilizada pela indústria do agronegócio, na qual os animais destinados ao consumo humano nascem por encomenda, vivem em sofrimento e morrem miseravelmente. Importa dizer que a doutrina antropocêntrica, embora preponderante, contou com ilustres opositores ao longo da história. O pensador grego Pitágoras (565-495 a.C.), após conhecer os principais centros espirituais da Antiguidade (India, Egito e Babilônia), tornou-se adepto da meditação, da alimentação vegetariana e da compassividade, a ponto de adquirir animais cativos nos mercados para soltá-los na mata. Consta que ele fundou, nas colinas de Crotona, uma cidade regida pelo amor e não pelo Direito, utopia essa que acabou sendo impiedosamente destruída. Na Grécia Antiga, época dos filósofos naturalistas, acreditava-se na dinâmica das coisas, na evolução das espécies e na origem animal do homem. Segundo as concepções da Escola de Mileto, a vida é uma contínua transformação, uma luta entre contrários e sujeita às vicissitudes do tempo e do espaço. Tal corrente de pensamento, surgida cinco séculos antes da era cristã e bastante elevada do ponto de vista espiritual, inseria o ambiente em uma perspectiva cósmica. Interessante notar que essa pioneira manifestação filosófica continha pontos de contato com o chamado Direito Natural, cujos princípios – inspirados no bom sendo e na equidade – decorrem das próprias leis da natureza.

Se a Filosofia é uma invenção dos gregos, o Direito procede de Roma. Sob este aspecto, o sistema jurídico ocidental está quase todo ele sedimentado em bases antropocêntricas. Ainda que as leis positivas não devessem se afastar das leis naturais, o fato é que as ciências jurídicas nunca se importaram com o valor intrínseco da natureza ou com a extensão de direitos a seres não humanos. Em meio a tal contexto, os animais acabaram sendo inseridos no regime privatista perante o qual a noção do Direito alcança somente os homens em sociedade, transformando o entorno em res (coisas). Assim, sob o mesmo regime jurídico conferido aos objetos inanimados ou à propriedade privada, a servidão animal foi legitimada pelo Direito. O conceito do justo, porém, nem sempre está compreendido na noção do Direito, cujas leis – surgidas ao sabor das circunstâncias históricas e sujeitas aos múltiplos interesses políticos – podem vigorar em descompasso ao princípio da moralidade, que deveria inspirá-las. Como afirma o professor Nelci Silvério de Oliveira, a Justiça, como virtude moral, não deve ser interpretada apenas no sentido jurídico propriamente dito ou em termos quantitativos (“dar a cada um o que é seu”), mas o de um caminho à solidariedade e aos amor entre todas as criaturas: “Na verdade, o Direito sequer é um bem, é um mal necessário, que atua onde falha a Moral (...) E a moral é infinitamente superior ao Direito” (in ‘Curso de Filosofia do Direito’, p. 136). Ainda que os dois conceitos – Direito e Moral – obedeçam, em tese, ao comando da Ética, somente conjugados entre si é que podem atingir a ordem jurídica verdadeiramente justa. Não é fácil, porém, convencer as pessoas de uma verdade tão simples. No curso da história alguns pensadores ousaram desafiar o sistema tradicional vigente para afirmar que os animais também possuem direitos. No século II o pensador romano Celso já dizia que a natureza existe tanto para os animais quanto para os homens.

Para David Hume (1711-1776), “Nenhuma verdade me parece mais evidente que a de que os animais são dotados de pensamento e razão, assim como os homens. Os argumentos neste caso são tão óbvios que não escapam nem aos mais estúpido e ignorantes.” (in ‘Tratado sobre a natureza humana”, p. 209. Há mais de duzentos anos outro filósofo inglês, Jeremy Benthan (1748-1832), argumentava magistralmente em favor dos direitos dos animais: “Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania (...) A questão não é saber se os animais são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas se são passíveis de sofrimento.” (in ‘The Principles of Morals and Legislation, cap. XVII, I, nota ao par. 4). Já o pensador alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) escreveu que a piedade, princípio de toda a moralidade, não depende de ideias preconcebidas, de religiões, de dogmas, de mitos, de educação ou da cultura, para colocar os animais sob o seu manto protetor: “Insistir na suposta inexistência de direito dos animais, como se nossa conduta para com eles não tivesse importância moral, porque deveres humanos em relação aos animais inexistem, é agir de modo preconceituoso e com uma ignorância revoltante” (in ‘Dores do Mundo’, p. 124).

Na segunda quadra do século passado o professor Cesare Goretti (1886-1952), que lecionava Filosofia do Direito na Universidade de Ferrara, Itália, observou que os animais, quando domesticados, participam do ordenamento jurídico humano, surgindo daí nosso dever legal e moral, principalmente, de não tratá-los com brutalidade: “Se não podemos negar a eles um princípio de moralidade (companheirismo, gratidão, amizade), que razão temos em recusar sua participação em nossa ordem jurídica, que é apenas um esfera da moral?” (in ‘L´animale quale soggeto di diritto”, Rivista di Filosofia, n. 19, Itália).Esse primoroso ensaio, ao desvincular os animais da perspectiva jurídica privada, teve o mérito de rebater o clássico conceito de que eles são objetos passíveis de uso, gozo e fruição, reconhecendo-os como detentores de uma capacidade jurídica sui generis. Ao questionar, mediante profunda argumentação filosófica, por que o animal – como ser sensível que é – permanece relegado à condição meramente passivo da relação jurídica, o professor Goretti projeta novas luzes sobre o tema relacionado ao estatuto ético dos animais, concluindo que o homem possui, a um só tempo, dever legal e moral sobre eles.

A Justiça dos homens muitas vezes é injusta. Aqueles que sustentam a visão antropocêntrica do direito constitucional, que veem o homem como único destinatário das normas legais, que acreditam ser a crueldade um termo jurídico indeterminado, que defendem a função recreativa da fauna e que põem o ser humano como usufrutuário da natureza, rendem assim uma infeliz homenagem à intolerância, ao egoísmo e à insensatez. Porque o Direito não deve ser interpretado como mero instrumento de controle social, que garante interesses particulares e que divide bens. Deve projetar-se além da perspectiva privada, buscando a retidão, a solidariedade e a virtude. Nesse contexto, o próprio conceito de educação ambiental merece uma interpretação mais profunda, livre do critério da utilidade que impregna as relações humanas. Em seu livro “Educação ou adestramento ambiental?”, a professora Paula Brügger mostra que a transformação de uma realidade assume um caráter político, porque voltada para uma mudança de valores que privilegie a solidariedade e o respeito. Não se trata de menosprezar os deveres do homem em relação a seus próprios semelhantes, e sim reconhecer que a postura ética – em sua plenitude – supera a barreira das espécies.

2. PARADOXOS JURÍDICOS

O Brasil é um dos poucos países do mundo a vedar, na própria Constituição Federal, a prática de crueldade para com os animais. Consta de seu artigo 225 § 1o, inciso VII, que incumbe ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade”, postura essa que inspirou o legislador ordinário ambiental a criminalizar, no artigo 32 caput da Lei 9.605/98, todo aquele que “praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. A maioria das cartas estaduais, acompanhando aquele mandamento supremo, proíbe a submissão de animais a atos cruéis. Conclui-se, diante disso, que o nosso repertório legislativo é mais do que suficiente para, em tese, proteger os animais da maldade humana. O problema maior é o abismo jurídico que separa a teoria da prática. Se determinadas condutas humanas não forem questionadas perante o Poder Judiciário, dificilmente mudaremos o atual estado de coisas. Convém ponderar que as leis de proteção aos animais firmaram-se apenas no século 20. No Brasil, especificamente, a vedação à crueldade preconizada no decreto federal 24.645/34, tornou-se contravenção penal (art. 64 da LCP) e, bem depois, crime ambiental (art. 32 da Lei 9.605/98), já com o respaldo constitucional de nossa atual Carta Política (art. 225 § 1o, VII). Não obstante tal repertório legislativo, a situação da chamada fauna doméstica ou domesticada, em plena era da globalização, é desoladora. Exceção feita aos animais de estimação que, na maioria das vezes, têm uma vida tranquila e sem sobressaltos, assim como às espécies nativas que conseguem ficar longe da ação predatória humana, considerável parcela da fauna brasileira vive sob o signo do sofrer. Basta um olhar crítico sobre o que acontece nas fazendas de criação, nos laboratórios científicos, nos centros de controle de zoonoses e nas companhias de diversões públicas para concluir que a crueldade, quando justificada pelo uso do animal, acaba obtendo respaldo legal. Não seria exagero dizer que, no Brasil, em diversos setores (agronegócio, científico e sanitário) a crueldade se torna consentida, isto é, aceita pelo Poder Público como mal necessário. Isso para não falar daquela perfazia em eventos supostamente culturais e recreativos (rodeios, vaquejadas, circos, zoológicos, caça e pesca esportiva, etc), que não raras vezes contam com o beneplácito do próprio Poder Público. É triste constatar que o uso econômico do animal e a chamada finalidade recreativa da fauna, embora possam contrariar a moral e a ética, têm respaldo em diplomas permissivos de comportamentos cruéis, a exemplo do que se vê na lei do Abate Humanitário, na lei da Vivissecção, na lei dos Zoológicos, no Código de Caça e de Pesca, na lei da Jugulação Cruenta e na lei dos Rodeios. Nem sempre as pessoas entendem que acima de todas as leis ordinárias, sejam elas federais ou estaduais, vige a Carta da República, cujo artigo 225 §1o, VII, obriga o poder público a coibir a submissão de animais a atos de crueldade. Este, aliás, é o fundamento legal para a proteção dos animais no Brasil. Trata-se de um preceito que, longe de vincular a proteção à fauna apenas enquanto bem ambiental, estende sua tutela a todos os animais, indiscriminada e individualmente, sejam eles silvestres, nativos ou exóticos, domésticos ou domesticados, terrestres ou aquáticos, reconhecendo a capacidade sensciente de cada ser vivo. Como, então, desafiar um sistema jurídico capaz de legitimar a crueldade para com os animais?

Há que se dizer que, em termos legais, vigência não se confunde com eficácia. É que os aparentes conflitos de normas e as leis permissivas de comportamentos cruéis, diante de uma economia capitalista impregnada pelo estilo antropocêntrico de viver, acabam ‘legitimando’ a exploração animal. Embora permitida pelo Direito, a milenar ação escravagista do homem sobre o animal será sempre, do ponto de vista filosófico, uma prática injusta, principalmente quando oprime, agride, tortura ou mata. A conveniência humana, ainda que justificada pelo prazer gastronômico, pela estética da vaidade, pelo divertimento público, pelas crenças religiosas e pela suposta verdade científica, acaba preponderando sobre o destino dos animais subjugados. Vale aqui lembrar, como exemplo de genocídio animal consentido, o que acontece diariamente nos matadouros e frigoríficos, nas granjas de produção industrial, nos centros de controle de zoonoses e nos laboratórios de experimentação científica. Também nos criadouros comerciais, nas fazendas de criação intensiva e nas áreas em que a caça amadora é permitida, os animais ali mantidos são previamente condenados à morte. Já a propalada função recreativa da fauna impinge sofrimento a milhares de outros animais, domésticos ou selvagens, utilizados em rodeios, vaquejadas, circos e zoológicos. Um cenário deprimente, em que o animal jamais é considerado por sua individualidade ou por sua capacidade de sofrer, mas em função daquilo que pode render – em termos monetários ou políticos – àqueles que os exploram.

Não é à toa que, para o direito civil, o animal é coisa ou semovente; no direito penal, objeto material; e, no direito ambiental, bem ou recurso natural. No jargão do agronegócio, bois e vacas perdem sua condição natural de seres sencientes para se tornarem rebanho, plantel, cabeças, peças ou matrizes; no circo, leões, macacos, tigres e ursos adestrados são protagonistas do triste espetáculo da dominação humana; nos depósitos municipais os cães acabam sendo sacrificados em razão de seu risco potencial à saúde pública; nas mesas dos centros de pesquisa científica, coelhos, camundongos, rãs, cães e hamstes são considerados, todos eles, simples cobaias. E assim por diante, a dialética da opressão faz com que os animais permaneçam sempre curvados às vicissitudes históricas, culturais, políticas e econômicas dos povos, sofrendo violências atrozes e desnecessárias. A lei ambiental brasileira, tida como uma das mais avançadas do planeta, parece ignorar o destino cruel desses milhões de animais que perdem a vida nos matadouros, nos laboratórios e nos galpões de extermínio, que tanto sofrem nas fazendas de criação, nos picadeiros circenses e nas arenas públicas ou, então, que padecem em gaiolas ou em cubículos insalubres, para assim atender aos interesses do opressor. Existe uma barreira conceitual que impede aos homens de enxergar uma verdade cristalina. O sabor da carne, a ditadura da vaidade e os falsos mitos da saúde pública contribuem para erguer esses gigantescos muros invisíveis. Condicionar a crueldade à submissão dos animais ao sofrimento inútil ou desnecessário é, de certa forma, negar à natureza um valor em si, como se tudo o que existe no mundo gravitasse em função do interesse humano. Estar-se-ia, assim, separando o homem da natureza, para torná-lo espécie desfrutadora e consumidora do mundo natural. A noção de crueldade, nesse contexto, acaba se submetendo às regras do utilitarismo, de modo que a conduta cruenta somente se caracterizaria como tal se o homem assim o dispusesse. Embora algumas fórmulas e expressões ecológicas impregnadas de dubiedade – desenvolvimento sustentável, garantia da sadia qualidade de vida, manifestação da cultura do povo, atividade cultural e prática necessária ou socialmente consentida – possam, de certa forma, sustentar o discurso antropocêntrico dominante, sua tônica não resiste ao confronto filosófico. Segundo a professora Sônia T. Felipe, da Universidade Federal de Santa Catarina, “Ao dizermos que animais devem ficar excluídos de nosso horizonte moral, por não serem capazes de firmar ou de cumprir contratos, estamos apenas reduzindo o âmbito moral aos parâmetros do mercado” (discurso apresentado em mesa-redonda sobre o uso de animais, na Universidade Federal de Santa Catarina, em 18.06.1999).

Nosso Direito Ambiental, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não se limita a proteger a vida do animal em função dos chamados bons costumes, do equilíbrio ecológico ou da sadia qualidade de vida. A noção de crueldade, longe de permanecer afeita apenas à saúde psíquica do homem, é universal e anterior ao direito positivo. Ações agressivas e dolorosas, longe de constituir simples conceitos abstratos, recaem sobre um corpo senciente. A dor é real, ainda que nosso sistema jurídico muitas vezes a desconsidere em relação aos animais. Ao dispor expressamente sobre a vedação à crueldade, o legislador pátrio erigiu um dispositivo de cunho moral que se volta, antes de tudo, ao bem-estar do próprio animal e, secundariamente, da coletividade. Apesar de sua acentuada feição antropocêntrica, a Constituição da República reconhece que os animais podem sofrer, abrindo margem para a interpretação biocêntrica do preceito que veda a crueldade.

Há, também, uma limitação ao princípio geral da atividade econômica previsto no art. 170, VI, da CF, que prega a observância da ética em toda atividade que envolver a exploração da natureza e dos animais. Outros princípios constitucionais informam a política brasileira de proteção à fauna, conforme ensinamentos da advogada ambientalista Vanice Teixeira Orlandi: a) da legalidade: enquanto é lícito ao particular fazer tudo o que a lei não veda, à Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza (art. 70 caput da CF), de modo que a matança de animais não nocivos à saúde ou à segurança social fere esse princípio; b) da moralidade: condenar à morte um animal saudável, pelo fato dele não pertencer a ninguém, é o mesmo que admitir que sua vida só tem valor se, de alguma forma, servir ao interesse humano; c) da educação ambiental: o poder público deve ensinar as pessoas a respeitar o meio ambiente e os animais, conforme preconizado no art. 225 caput da CF); d) da precaução: os objetivos do Direito Ambiental também nas questões relacionadas aos animais, às vezes com medidas preventivas capazes de evitar sofrimentos e mortes.

Essa missão incumbe ao Ministério Público – instituição devidamente credenciada, do ponto de vista histórico, legal e técnico, para exercer a tutela dos interesses difusos – substituindo aqueles não têm como se defender (princípio da representação). O suposto conflito de normas legais (princípios econômicos x bem-estar animal, liberdade de religião x abate humanitário, meio ambiente natural x meio ambiente cultural, direito à pesquisa x recursos substitutivos, etc) é apenas aparente. A legislação brasileira – independentemente de seu pretenso contexto ecológico – protege os animais todos, colocando-os a salvo de maus tratos e crueldades, direito esse projetado no âmbito constitucional. Efetivar tal mandamento é uma questão de bom senso, porque, ao sopesar aqueles valores, o direito à vida e à integridade física não podem sucumbir diante de interesses comerciais, econômicos ou religiosos (princípio da proporcionalidade). Aceitar a vigência de determinadas normas jurídicas ou sanitárias que contrariem o preceito magno que veda a crueldade para com os animais significa compactuar com a injustiça. Afinal, o que se vê em meio à sociedade globalizada é um autêntico massacre consentido, em que a essência de determinadas leis relacionadas a animais acabou contaminada pela insana lógica capitalista perante a qual seres vivos transformam-se em carcaças, a Moral sucumbe e o Direito se torna injusto.

Cabe principalmente ao Ministério Público, como guardião do ambiente e curador dos animais, zelar pela fiel aplicação da norma protetora suprema, lutando para que nenhuma lei infraconstitucional legitime a crueldade, que nenhum princípio da ordem econômica justifique a barbárie, que nenhuma pesquisa científica se perfaça sem ética e que nenhum divertimento público ou dogma religioso possam advir de costumes desvirtuados ou de rituais sanguinolentos. Contra a injustiça, a hipocrisia social, as tradições cruentas e os subterfúgios jurídicos que permitem esse autêntico genocídio de seres inocentes, devem os promotores Ação Civil Pública e do Inquérito Civil, somados à possibilidade de firmar Termo de Ajustamento de Conduta ou de expedir Recomendação, surtem bons efeitos preventivos, reparatórios e pedagógicos. No âmbito penal, caso o fato já se tenha consumado, propostas de transação penal, suspensão processual ou prestação de serviços à coletividade, mediante atividades ressocializadoras e/ou educativas, podem contribuir para que a conscientização do infrator. O essencial, seja como for, é atribuir aos animais a condição de seres sensíveis, cujos interesses são representados em juízo pelo promotor de Justiça, mediante substituição processual.

3. IDEOLOGIA E ALIENAÇÃO

Dentre as práticas cruéis mais aceitas pela sociedade estão aquelas relacionadas às atividades científicas que envolvem experimentação animal ou vivissecção. Se a experimentação animal pode ser definida como todo e qualquer procedimento que utiliza animais, independentemente do emprego de anestesia, para fins científicos ou didáticos, a vivissecção - modalidade específica daquele gênero - consiste na dissecação de bichos vivos para estudos de natureza como for, ambas contem em si um acentuado grau de crueldade, porque submetem milhões de animais - a cada ano – a martírios terríveis: testes químicos, toxicológicos, dermatológicos, oculares, comportamentais, psicológicos, cerebrais, dentários e até bélicos. Tais experiências, invariavelmente macabras, são facilmente encontradas na literatura médica: sapos trepanados, ratos mutilados, gatos com eletrodos na cabeça, cães estraçalhados em prensas mecânicas, macacos intoxicados, coelhos cegados, porcos queimados, pombos submetidos à ação do gelo e cavalos inoculados com veneno constituem alguns dos exemplos do vasto repertório de aberrações já cometidas pelos pesquisadores em nome da ciência. Herdeiros de Descartes e de Claude Bernard, os cientistas contemporâneos ainda estão imersos no antigo paradigma reafirmador das ideologias cientificista e tecnicista. Embora admitam certo ‘desconforto’ em utilizar animais nas pesquisas, justificam sua postura invasiva por acreditar que a vivissecção é um mal necessário.

A respeito desse assunto o professor João Epifânio Regis Lima propôs, em 1995, uma séria reflexão sobre a metodologia oficial que legitima a tortura em animais. Em brilhante tese de mestrado apresentada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, sob o título “Vozes do Silêncio – Cultura Científica: Ideologia e alienação no discurso sobre vivissecção”, ele teve o mérito de questionar a postura científica dominante, na qual o capitalismo, o cientifismo e o tecnicismo constituem o tripé ideológico que sustenta as bases do sistema social vigente. Algumas de suas observações, feitas nesse pioneiro trabalho acadêmico que ousou contrariar a metodologia científica oficial, merecem ser transcritas:

“Defender a vivissecção como técnica única (ou unicamente confiável) de exploração biológica a nível orgânico e médico é partir do princípio (positivista) de que apenas os fatos concretos e diretamente observáveis são fonte seguro de conhecimento”. “Além de considerarem a ciência como a forma por excelência de adquirir conhecimento sobre o mundo, adota-se uma maneira particular de resolver problemas específicos a uma determinada área do conhecimento como sendo única, caracterizando a imersão em um paradigma, o qual, estando acima de qualquer suspeita, não é questionado”. “A vivissecção, ou os pressupostos e princípios de que ela parte, acabaria desempenhando papel importante como afirmadora de uma ordem cultural de uma hegemonia, na medida em que define quem mata e quem morre, quem é sacrificável e quem não o é”. “Mal necessário significando ‘não gosto, mas não há saída, não tenho saída’ revela um acuamento, um constrangimento de possibilidades de ação”.

Daí porque a instituição científica, ao negar qualquer possibilidade de questionamento sobre a prática da experimentação animal, acaba se valendo do princípio da autoridade para impor sua metodologia cruel. Isso faz com que as pessoas nela inseridas – sejam funcionários, sejam estudantes – não ousem questionar o sistema ali adotado, até mesmo por temor reverencial. Dever-se-ia, nesses casos, facultar a elas a opção pela escusa de consciência, caso não queiram participar de atividades vivisseccionistas, porque ninguém pode ser obrigado a fazer aquilo que desrespeite seus princípios morais. O fundamento jurídico para o reconhecimento deste direito, aliás, está na própria Constituição Federal, cujo artigo 5º, VIII, é expresso: “Ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa fixada em lei”. Aos olhos do pesquisador, entretanto, os animais são criaturas eticamente neutras, coisas, produtos, matrizes ou peças de reposição, tratados como meros objetos descartáveis. Existe um profundo silêncio sobre esse assunto, no qual a vivissecção – conclui o professor Regis Lima - funciona como instrumento de reiteração de uma ordem cultural.

Não se pode negar, todavia, que a norma jurídica ambiental contida do artigo 32 par. 1º da Lei nº 9.605/98 reconheceu a crueldade implícita na atividade experimental sobre animais, tanto que se adiantou em indicar outros caminhos para impedir a inflição de sofrimentos. Se hoje a realização de experimentos está condicionada à ausência de métodos alternativos, isso significa – na lúcida visão dos biólogos Sérgio Greif e Thales Tréz (“A verdadeira face da experimentação animal”, p.137) – que, ao menos no plano teórico, a atividade vivisseccionista contraria a lei. Afinal, técnicas alternativas ao uso do animal em laboratórios já existem dentro

e fora do País. A busca de um ideal aparentemente utópico, o de abolir toda e qualquer forma de experimentação animal, tanto na indústria como nas escolas, não permite o comodismo nem o preconceito. Imprescindível que o cientista saia da inércia acadêmica para trazer às universidades e aos centros de pesquisa alguns dos métodos alternativos já disponíveis e que poderiam perfeitamente ser adotados no Brasil, dispensando o uso de animais.

Dentre os mais conhecidos recursos capazes de livrar os animais dos experimentos, podem ser relacionados: 1) sistemas biológicos in vitro (cultura de células, tecidos e órgãos passíveis de utilização em genética, microbiologia, bioquímica, imunologia, farmacologia, radiação, fisiologia, toxicologia, produção de vacinas, pesquisas sobre vírus e sobre câncer); 2) Cromatografia e espectometria de massa (técnica que permite a identificação de compostos químicos e sua possível atuação no organismo, de modo não-invasivo); 3) Farmacologia e mecânica quânticas (avaliam o metabolismo das drogas no corpo); 4) estudos epidemiológicos (permitem desenvolver a medicina preventiva com base em dados comparativos e na própria observação do processo de doenças); 5) estudos clínicos (análise estatística da incidência de moléstias em populações diversas); 6) necrópsias e biópsias (métodos que permitem mostrar a ação das doenças no organismo humano); 7) simulações computadorizadas (sistemas virtuais que podem ser usados no ensino das ciências biomédicas, substituindo o animal); 8) modelos matemáticos (traduzem analiticamente os processos que ocorrem nos organismos vivos); 9) culturas de bactérias e protozoários (alternativas para testes cancerígenos e preparo de antibióticos; 10) uso da placenta e do cordão umbilical (para treinamento de técnica cirúrgica e testes toxicológicos); 11) membrana corialantóide (teste CAME, que se utiliza de membrana dos ovos de galinha para avaliar a toxidade de determinada substância); 12) pesquisas genéticas (estudos com DNA humano), etc. Inúmeros países considerados desenvolvidos já aboliram o uso de animais em pesquisas didático-científicas, principalmente nas escolas, como se pode constatar das nações que integram a Comunidade Europeia, o Canadá e a Austrália. Nos EUA, a propósito, mais de 70% das faculdades de Medicina não utilizam animais vivos, enquanto que na Alemanha esse índice é bem maior. Várias diretrizes da União Europeia foram firmadas com o propósito de abolir os testes com animais, dentre eles o terrível DL 50. Culturas de tecidos, provenientes de biópsias, cordões umbilicais ou placentas descartadas, dispensam o uso de animais.

Vacinas também podem ser fabricadas a partir da cultura de células do próprio homem, sem a necessidade das técnicas invasivas experimentais em cavalos, envolvendo a sorologia. Isso sem esquecer dos modernos processos de análise genômica e sistemas biológicos in vitro, que, se realizados com ética, tornam absolutamente desnecessárias antigas metodologias relacionadas à vivissecção, em face das alternativas hoje existentes para a obtenção do conhecimento científico. Assim, em oposição à doutrina científica oficial que fez da fisiologia um dos intocáveis mitos da ciência médica e influenciou seguidas gerações de pesquisadores, a corrente antivivissecionista vem ganhando força. Há que se registrar, ao longo dos tempos, vozes ilustres que se levantaram contra o injusto massacre de animais na medicina, dentre elas as de Voltaire, Mark Twain, Victor Hugo, Leon Tolstói, Richard Wagner, Gandhi, Donald Griffin, Charles Bell, Alfred Russel Wallace, Pietro Croce, Hans Ruesch, Milly Shär-Manzoli, Carlos Brandt, George Bernard Shaw, Jane Goodall e Henry Spira. No Brasil, a própria lei ambiental preconiza a adoção de recursos alternativos em substituição ao uso do animal vivo: é preciso, também por isso, cobrar dos cientistas essa necessária mudança de metodologia, sob pena de continuarmos perpetuando a máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios.

4. VIOLÊNCIA LEGITIMADA

Em auspicioso ensaio científico-filosófico tratando da dor em animais, o professor Bernard E. Rollin, que leciona Filosofia na Universidade do Colorado/EUA, chegou a uma conclusão desoladora: a imensa maioria das hipóteses de sofrimento animal provém da crueldade deliberada, que ocorre, via de regra, nas fazendas de criação, nos matadouros e nos procedimentos de vivissecção. Isso significa, a contrario sensu, que apenas pequena parte das situações de crueldade para com os animais acaba sendo coibida pela lei. Tal constatação, infelizmente, é verdadeira. Basta que se examine as estatísticas de diversos setores produtivos que se utilizam de animais, no campo ou na cidade. No setor do agronegócio, em solo brasileiro, diariamente milhares de animais são confinados, descornados, queimados, degolados, eletrocutados, escalpelados e retalhados para servir à indústria da carne. É comum, nas chamadas fazendas de criação, que a propriedade do bovino seja proclamada, a ferro quente, na pele do animal. Os cortes de cauda nas ovelhas, a extração dos dentes dos suínos, as debicagens nas galinhas e as castrações de bois e cavalos, tudo sem anestesia, constituem outras práticas inegavelmente cruéis, porém, toleradas pela lei. Isso sem falar no perverso sistema de confinamento, na dieta com hormônios para agilizar o processo de engorda e, por fim, depois de um indigno transporte aos matadouros ou abatedouros, quando os animais são amontoados nas carrocerias dos caminhões, rumo à derradeira agonia da morte anunciada. Tamanho morticídio acaba sendo justificado pela demanda alimentar carnívora, perfazendo-se por intermédio dos métodos oficiais de matança: pistola de concussão cerebral, eletronarcose e gás CO2. Estas opções, tidas como formas legítimas de abate humanitário, têm o respaldo da Organização Mundial da Saúde, a qual – diga-se de passagem - está imersa na ideologia científica dominante (tanto que a definição de dor aceita pela Sociedade Internacional para o Estudo da Dor parte do pressuposto que apenas os seres com linguagem articulada são capazes de senti-la). Evidente que, partindo dessa premissa antropocêntrica, ciência e ética caminham em direções opostas, o que torna as leis permissivas de comportamentos cruéis destituídas do necessário componente moral.

Ninguém deveria desconhecer que em determinados matadouros-frigoríficos o abate ritual impede que os bovinos recebam prévia insensibilização. Suspensos em correntes e sangrados vivos, segundo os preceitos religiosos que regem a jugulação cruenta, esses animais experimentam atroz sofrimento até que lhes sobrevenha a morte. Há no Brasil 190 milhões de bovinos sendo criados para o corte, com parte do rebanho destinado ao abate religioso (o mais lucrativo de todos, porque serve à exportação). Mais triste é constatar que, embora tais métodos traduzam a crueldade em seu grau máximo, uma lei estadual paulista (Lei n. 10.470/99) alterou a eufemística lei do abate humanitário (Lei n. 7.705/92) justamente para atender aos interesses dos produtores da chamada carne branca, que serve ao mercado israelita e muçulmano. Desse modo, uma lei flagrantemente inconstitucional – ao regular a chamada jugulação cruenta - vem legitimando a crueldade sobre animais submetidos aos horrores do abate ritual. Se o Ministério Público, independentemente da fiscalização do SIF (Serviço de Inspeção Federal) não se inteirar do que acontece dentro dos matadouros para, conforme o caso, propor medidas administrativas (TAC) e/ou judiciais (ação civil ou penal) a fim de cessar as irregularidades, a Justiça continuará cega e impassível diante de um genocídio que se pretende legal. Porque nenhum costume desvirtuado e nenhum dogma religioso podem se legitimar com base na tortura.

Os pecuaristas industriais não se apercebem que, além de exercer uma atividade econômica pouco ética, perfazida à custa do sofrimento animal, eles também contribuem para a degradação do ambiente. Sabe-se, afinal, que a criação bovina requer muita água e espaço para pastagens. Segundo o jornalista Washington Novaes, fundamentado nas pesquisas do Worldwatch Institute, pelo menos 15 mil litros de água são necessários para produzir um quilo de carne, ao passo que um quilo de batatas pode ser produzido com até 500 litros. Afora a ampliação dos campos de pastagem, cada vez mais é ampliada a área destinada ao plantio dos grãos que sustentam o gado. Isso implica em queimadas, desmatamentos e perda da biodiversidade. Outro aspecto ecológico da questão diz respeito ao considerável aumento no consumo de carne pelas nações ricas, que já supera e muito a capacidade de recomposição do ambiente natural dos países produtores. Todos esses problemas éticos e sanitários da criação animal, diagnosticados pela Compassion in World Farming (CWF) e pela Universidade de Bristol, foram objetos de comentários pelo nobre articulista do jornal “O Estado de S.Paulo”:

“Os frangos hoje provém de um pool genético (...) Crescem tão rapidamente que o esqueleto não chega a se formar de todo, com sofrimento intenso. A pressão sobre o sistema cardiovascular (...) é intensa. Grande parte do plantel desenvolve ascite, deficiências no coração, edema no fígado. Por tudo isso, são animais que procuram nos alimentos de preferência fragmentos que contenham analgésicos – o que pode levar a outros problemas para o consumidor. Nos rebanhos bovinos os problemas sãofreqüentes, principalmente com bezerros que crescem tanto no útero que as cirurgias cesarianas se tornam quase regra” (artigo ‘Fraquezas da carne’, jornal “O estado de S.Paulo”, edição de 02.07.2004).

Não é à toa que doenças oportunistas como a gripe aviária e a febre aftosa vêm se tornando endêmicas, expondo a gravidade de uma situação de risco que já se alastra pelo planeta. O Brasil se tornou, na última década, o maior exportador mundial de carne, possuindo um rebanho bovino que se equipara à população humana: 200 milhões de almas. Além do uso desregrado, temerário e, por vezes, ilegal de medicamentos e drogas estimulantes, a moderna indústria de criação de animais insiste em ignorar as predisposições alimentares das espécies criadas, fornecendo a seres herbívoros rações feitas com restos de animais. Essa aberração, como se sabe, gerou outra aberração: a epidemia de encefalopatia espongiforme bovina (popularmente conhecida como “mal da vaca louca”), que, além de eliminar vidas humanas, levou à dizimação milhares de animais com suspeita de contágio. Com relação às galinhas asiáticas, uma moléstia provocada pelo sistema de confinamento fez com que os produtores decidissem pelo extermínio em massa das aves, a exemplo do que faz o criador brasileiro em relação ao gado bovino suspeito de contaminação pela febre aftosa.

Em síntese, toda a barbárie cometida diuturnamente contra os animais destinados ao consumo não acontece apenas pela pretensa necessidade de o homem comer carne, mas em razão dos vultosos interesses econômicos que movem a indústria pecuária. A ‘cultura do churrasco’ – mola propulsora da crueldade no agronegócio – tornou-se uma instituição nacional, apesar dos grandes latifúndios que, se utilizados no plantio de vegetais, poderiam aplacar o drama da fome nas classes sociais menos favorecidas. Priorizou-se, entretanto, o consumo de produtos de origem animal em vez dos de origem vegetal, como se a alimentação carnívora fosse imprescindível ao ser humano. Uma dieta vegetariana, rica em cálcio, ferro, proteínas e vitaminas - leguminosas, frutas e verduras – é capaz de suprir as necessidades nutricionais de qualquer pessoa, sem que seja preciso submeter os animais a tantos sofrimentos. A crueldade consentida não se esgota na indústria da carne. Também no meio cultural há determinados espetáculos públicos que se perfazem mediante a imposição de dor – abuso e maus tratos - aos animais. É o que se vê nos rodeios e nas vaquejadas, em que provas de laço e de montaria submetem bovinos e eqüinos a verdadeiro tormento. Sob o efeito compressivo do sedém – seja ele uma cinta de couro, seja uma corda americana, independentemente do material pelo qual é confeccionado – touros e cavalos alteram seu comportamento habitual, pulando na arena para tentar se livrar daquilo que os oprime. A impressionante reação dos animais está associada à inflição de estímulos dolorosos em seus órgãos internos (genitália, sistema digestivo, nervos e glândulas vesiculares). O sedém provoca, portanto, dor e sofrimento, sem necessariamente causar lesões na pele ou esterilidade no animal. Da mesma forma as esporas, utilizadas para estocar os animais durante a montaria, mediante seguidos golpes aplicados pelo peão no baixo-ventre e no pescoço do animal, implica em maus tratos. Quanto às provas de laço, típicas das vaquejadas, não raras vezes ocasionam deslocamento de vértebras, rupturas musculares e fratura de ossos dos animais perseguidos no brutal espetáculo de sadismo humano. Apesar dessas evidências, o Congresso Nacional aprovou, em favor daqueles que exploram esse tipo de empreendimento, duas leis que afrontam abertamente o dispositivo constitucional protetor de animais: uma que equiparou o peão de rodeio a atleta profissional, referindo-se às provas de laço, montarias e vaquejadas como ‘práticas esportivas’’ (Lei 10.221/01); e, outra, a lei federal dos rodeios, permissiva do sedém macio e da espora romba (Lei 10.519/02), como se a crueldade pudesse ser desconstituída por mera disposição de lei.

Em 1997 o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a farra do boi, não obstante os argumentos sociológicos invocados para que se reconhecesse a pretensa legitimidade dessa carnificina legada pelos imigrantes açorianos a seus filhos brasileiros. Desrespeitando a decisão Suprema, de modo a fazer tabula rasa dos princípios elementares da moral e do direito, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina teve a audácia de promulgar, em 4 de abril de 2000, a Lei 11.365, que dispunha a regulamentar a “tradição açoriana conhecida como farra do boi’, desde que se realizada em fazendas cercadas denominadas mangueirões e sem ocasionar maus tratos aos animais. A advogada Vânia Rall Daró, inconformada com a continuidade da farra do boi mesmo depois da decisão pelo STF, deixou registrado o seu justo fim da chamada farra do boi, pois aos políticos interessa fazer o jogo da situação; os religiosos acreditam que devemos respeito somente aos semelhantes; os intelectuais aplaudem-na – alguns até delas participam – como uma ´manifestação genuína do povo´; os cidadãos comuns, na sua costumeira indiferença, julgam que o sofrimento dos animais não lhe diz respeito; a imprensa, que poderia esclarecer o que se passa, não se preocupa em denunciar as atrocidades dessa diversão macabra. É uma pena, pois, se nessa farra os animais perdem a vida, nós, seres humanos, perdemos a dignidade” (in ‘Farra com Boi’, Jornal da Cidade, Bauru, 12/4/2001).

E os exemplos de crueldade aceita ou tolerada pela lei não cessam, pelo contrário, multiplicam-se em proporção geométrica: circos que subjugam e subvertem a natureza dos bichos, transformando-os em mudos escravos; cavalos, burros e jumentos açoitados publicamente para que cumpram sua sina servil; zoológicos transformados em vitrines vivas, exibindo às pessoas suas coleções de animais aprisionados; touradas que cruzam as fronteiras ibéricas para difundir, em outros povos, a cultura da violência; fazendas de caça e competições de pesca que promovem a matança ´esportiva´ com o aval dos próprios órgãos incumbidos de proteger a natureza e os animais. A lista perversa, infelizmente, parece não ter fim: criadouros comerciais de peles e produtos de couro manufaturado, associações de passeriformes, indústria gastronômica, tráfico animal, biopirataria, clonagem, etc. Isso tudo sem falar da matança generalizada de animais domésticos errantes (cães e gatos) que ocorre Centros de Controle de Zoonoses, sem que necessariamente eles estejam infectados com moléstia incurável ou que haja comprovação técnica de sua periculosidade social. Admitir o ‘sacrifício’ desses animais é confessar que a vida deles somente se justifica em função dos interesses do homem. Decididamente, o que acontece rotineiramente nos CCZs não se confunde nem de longe com eutanásia. É extermínio mesmo.

5. ÉTICA SEM FRONTEIRAS

O embate antropocentrismo x ecocentrismo não é uma questão neutra nem irrelevante, afirmam Édis Milaré e José de Ávila Aguiar ao demonstrar que a espécie humana não é mais a medida de todas as coisas, mas parte do mundo natural. Segundo eles, em primoroso ensaio sobre o tema, “O direito – em particular o direito ambiental – necessita construir novas pontes para alcançar a margem segura da realidade objetiva, ilustrada pelos saberes científicos (...) Por vezes é preciso coragem para mudar, abandonando o conforto da ‘ordem estabelecida’” (in ‘Antropocentrismo x Ecocentrismo na ciência jurídica, Revista de Direito Ambiental, n. 36). Se o positivismo jurídico nega ao ambiente um valor absoluto, como se a natureza fosse um mero palco para as ações humanas, essa tradicional concepção começa a mudar com o advento da corrente biocêntrica, que devolveu ao homem sua condição de simples espécie dentre outras tantas que integram a complexa ‘teia da vida”. Não se trata de menosprezar a importância da vida humana, mas de estender o alcance da justiça àquelas criaturas que também têm o direito de viver sem sofrimento. Há, enfim, que se ‘descoisificar’ a natureza, porque o ambiente não pode ser considerado apenas um conjunto de recursos submetidos à lei do mais forte.

Em 1972, época marcada pela Guerra Fria e por gritantes atentados ambientais, o mundo se mobilizou em torno da questão ecológica, transformando a célebre Conferência de Estocolmo em um verdadeiro divisor de águas em relação à postura humana com o entorno. Trinta e cinco anos depois o caos ambiental parece ressurgir das cinzas, pondo em xeque a economia, a política e as sociedades globalizadas. Basta dizer que apenas no último século o consumo de água aumentou 6 vezes, agravada pela incontida expansão agropecuária que acarreta em pouco tempo o esgotamento do solo e a perda da biodiversidade (1/4 da área cultivável do planeta é destinada ao agronegócio). A industrialização fabril contribuiu para o aumento da temperatura global, enquanto a pesca comercial aniquilou 90% a população de peixes oceânicos. O drama da seca já chegou à Amazônia, cujas florestas vêm sendo derrubadas a olhos vistos. Em meio à onda de queimadas, terremotos, desertificação, inundações e aquecimentos, que tanto assolaram o planeta no ano de 2005, surgem agora as pandemias que já atingem os animais das fazendas industriais e que põem em risco a própria incolumidade humana. O paradigma antropocêntrico precisa deixar de ser absoluto, caso contrário seremos cúmplices da grande tragédia ambiental que se anuncia.

Uma das formas para se obter transformações é retomar o conceito do direito natural, restabelecendo-se a visão sistêmica que nos permite interagir eticamente com o ambiente. Isso porque o mesmo sistema legal que ao longo dos séculos fez questão de distinguir pessoas e coisas, atribuindo aos homens a titularidade exclusiva dos direitos, afastou a natureza e os animais da esfera de nossas considerações morais.

A febre consumista que tanto explora o animal, entretanto, não retira a sensibilidade dos oprimidos, ainda que a lei civil considere os animais domésticos e domesticados como semoventes, e a lei ambiental - no trato dos silvestres -, bens de uso comum do povo. Na realidade, o caminho para o abolicionismo animal não está nos discursos da ONU e da UNESCO, nem nos tratados e convenções internacionais, tampouco nas leis positivas que traduzem – clara ou dissimuladamente – intenções humanas egoístas. Depende, sim, de mudanças interiores.

O reconhecimento de que existe um direito dos animais, a par do direito dos homens, não se restringe a divagações de cunho abstrato ou sentimental. Ao contrário, é de uma evidência que salta aos olhos e se projeta no campo da razão. Mesmo que nosso ordenamento jurídico aparentemente defira apenas ao ser humano a capacidade de assumir direitos e deveres (no âmbito civil) e de figurar no polo passivo da ação (no âmbito penal) - como se as pessoas, tão somente elas, fossem capazes de integrar a relação processual na condição de sujeitos de direito – é possível identificar imperativos éticos que, além da perspectiva biocêntrica, se relacionam ao bem-estar dos animais. O citado mandamento do artigo 225 § 1o, VII, da Constituição Federal, por exemplo, não se limita a garantir a variedade das espécies ou a função ecológica da fauna. Adentrou no campo da moral. Ao impor expressa vedação à crueldade, permite considerar os animais como sujeitos de direito.

Conclui-se, nessa linha de raciocínio, que o discurso ético em favor dos animais decorre não apenas da dogmática inserida neste ou naquele dispositivo legal protetor, mas dos princípios morais que devem nortear as ações humanas. O direito dos animais envolve, a um só tempo, as teorias da natureza e os mesmos princípios de Justiça que se aplicam aos homens em sociedade, porque cada ser vivo possui singularidades que devem ser respeitadas. E o que representa uma lei repressiva senão a implícita confissão da própria torpeza do homem? Isso explica porque a Ética e a Moral, como atividades de reflexão, precisam estar sempre acima do Direito. A postura piedosa e compassiva perante a vida deve se somar aos deveres humanos relacionados ao respeito e à proteção dos animais, erigindo-se em uma única e relevante questão filosófica.

Ainda que seja perfeitamente possível trazer os animais à relação processual, sob a tutela do Ministério Público, a libertação para seu milenar sofrimento não se encontra apenas na seara jurídica. O Direito, por mais boa vontade que se possa ter em aplicá-lo, não conseguiria, por si só, modificar o sistema que tanto oprime essas criaturas. Ações piedosas individualizadas, protestos públicos e propositura de demandas judiciais, embora possam evitar crueldades ou punir infratores, serão sempre medidas paliativas. É preciso uma tomada de consciência capaz de ampliar o campo de visão humana para além dos limites do poder econômico, da mídia

globalizada, dos índices do PIB, dos informes técnicos da OMS, dos discursos pseudoecológicos, das cartas de intenções proclamadas ao mundo e, porque não dizer, das

próprias leis que regem a vida em sociedade. A excelência espiritual, que se adquire com uma pedagogia voltada aos sentimentos, talvez seja a última esperança para neutralizar as desilusões geradas por um mundo materialista e insano, em que os animais nascem, vivem e morrem em função da vontade humana. Daí porque o único jeito de inventar um mundo novo é por uma educação que privilegie valores e princípios morais elevados. Algo que nos faça compreender, desde cedo, o caráter sagrado da existência. Mostrar às pessoas que a natureza e os animais também merecem ser protegidos pelo que eles são, como valor em si, não em vista do benefício que nos podem propiciar. As leis, por si só, não têm a capacidade de mudar as pessoas, mesmo porque o equilíbrio social preconizado pelo Direito vigora em meio a fragilidades e a incertezas. Somente a sincera retomada de valores, que depende de uma profunda conscientização humana, poderia livrar os animais de tantos padecimentos. Exatamente aquilo que propõe o educador Rubem Alves:

“A sabedoria precisa de esquecimento. Esquecer-se é livrar-se dos jeitos de ser que se sedimentaram em nós, e que nos levam a crer que as coisas têm de ser do jeito que são (...). Por isso quero ensinar as crianças. Elas ainda têm os olhos encantados” (in “A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir”, p. 51 e 66).

Não é preciso muito esforço imaginativo, portanto, para enumerar hipóteses capazes de inspirar a atuação dos membros do Ministério Público que desempenham a função de curadores do ambiente e dos animais. Dentre tantas medidas permeadas pelo ideal de justiça e pela ética da vida, algumas merecem ser lembradas: processar, na esfera penal e cível, aqueles que praticam crueldade em face de animais; opor-se aos espetáculos que se utilizam de animais para fins de diversão pública; exigir a utilização de métodos substitutivos à experimentação animal, evitando que a ciência perfaça, impunemente, a vivissecção; combater a criação de animais pelo método de produção intensiva, em que a avidez do lucro humano se sobrepõe ao martírio dos bichos confinados; lutar contra o abate religioso ou ritual, que submete o animal a atroz sofrimento; atuar contra a caça, seja ela de qual modalidade for, contra o contrabando de animais, contra a indústria de peles e a biopirataria; fomentar um processo de ressocialização dos homens, incutindo-lhes o respeito a vida em todas as suas formas; resgatar e reconhecer, enfim, a individualidade dos animais, como seres sensíveis que são, não apenas no contexto ambiental.

Se os promotores de Justiça e os procuradores da República utilizassem todas as armas que a lei põe a seu alcance, em prol dos verdadeiros ideais de Justiça, talvez um mundo novo pudesse amanhecer, sem cabrestos, sem correntes, sem chibatas, sem degolas, sem incisões, sem extermínios, sem jaulas, sem arpões e sem gaiolas, em que se priorizasse a vida, a integridade física e a liberdade de todas as criaturas. A questão, enfim, não é apenas jurídica, mas de ordem filosófica. Enquanto se continuar ensinando às crianças que os animais existem para servir ao homem e que, como seres inferiores, merecem ser utilizados ou escravizados, dificilmente essa situação mudará. O filósofo norte-americano Tom Regan, cuja teoria ética em defesa dos animais considera-os como legítimos detentores de direito, enxergou – como ninguém - aquilo que os homens não querem ver:

“Os animais não existem em função do homem… eles possuem uma existência e um valor próprios. Uma moral que não incorpore esta verdade é vazia. Um sistema jurídico que a exclua é cego”.

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